segunda-feira, 6 de julho de 2009






O Liberalismo de Turgueniev


GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro de Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com



Propriamente falando, a literatura russa inicia-se no século XIX, em quase todos os seus gêneros vivia a sua fase áurea. Antes desse tempo, existia, unicamente, uma confusão de lendas, que os historiadores definem como essência folclórica: tradições de caráter muito diverso, quase sempre de clima rural. A sociedade e o povos das metrópoles ajustavam-se a um meio, geralmente de tendências religiosas, com predomínio de um evidente sentido personalista, onde o emotivo e o místico prevalecem, nunca, porém, refletindo o que pode ser considerado gênero literário.
Anterior à obra de Ivan Turgueniev, surge com valor essencial, que lhes fixa o seu lugar nas letras universais, alguns romancistas de máxima importância, como a baronesa Krudener (1764-1824), com o seu romance Valéria e Nicolau Gógol (1790-1852), de inconfundível personalidade, autor de Taras Bulba, uma história de cossacos do século XVII; com igual mérito, Turgueniev, cuja obra se insere entre o romantismo e o naturalismo, consegue fazer-se admirado pelo grande público.
Nascido em Orel, Rússia, em 28 de outubro de 1818, Ivan Sergueivêvtch Turgueniev, era filho de um coronel reformado e de uma rica e despótica proprietária de terras. Como Tolstói, foi educado em casa por professores particulares, igualmente a muitos escritores da época. Era comum nas famílias rica e nobre como a sua, ter em casa professores e instrutores, quase sempre franceses ou alemães, para que os filhos aprendessem a falar as línguas estrangeiras.
Tendo ingressado na Universidade de Moscou aos quinze anos de idade, onde permanece apenas um trimestre, transferindo-se em seguida para São Petersburgo como estudante de letras, formando-se ao fim de três anos em 1837, mas estivera também por algum tempo na Universidade de Berlim, regressando a Petersburgo para fazer doutorado, mas não chegou a terminá-lo.
Em Moscou e Petersburgo, veio a freqüentar o meio literário, então dominado por Púshkin, o maior poeta da Rússia, e Gógol, autor que influenciaria muitos escritores e teatrólogos do início do século vinte.
Durante o período em que morou em Berlim, capital da Prússia, Turgueniev entrou em contato com as idéias liberais que estavam se espalhando pela Europa e que iriam operar profundas transformações na estrutura político-econômica do Velho Continente. De volta à Rússia, trabalhou por pouco tempo na administração estatal, o suficiente para que resolvesse se dedicar totalmente à literatura. Esta decisão, aliada do frustrado romance com a irmã do anarquista Bakunin.
Em 1842, manteve uma aventura com a costureira de sua mãe, com quem teve uma filha por ele reconhecida e enviada mais tarde para a França. No ano seguinte, apaixonou-se por Pauline Viardot-Garcia, cantora de ópera, a quem se manteria ligado até o final de sua vida. Essa decisão, piorara a sua já difícil relação com a mãe (Lutovinova), de cuja tirania só se veria livre em 1850, quando ela morreu.
Turgueniev iniciou nas letras russas como poeta romântico, influenciado pela obra de Lermontov, publicando poemas em 1843, uma comédia Imprudência e uma novela curta Andréi Kólosov (1844). Insatisfeito com sua produção, estava resolvido à abandonar a literatura, mas o êxito de Jor e Kalinich lhe devolveu a esperança.
Em 1846, Nekrasov comprou a revista O Contemporâneo, a qual havia sido fundada por Pushkin em São Petersburgo, que seria durante vinte anos a mais importante publicação mensal da Rússia e a principal para o nascimento do movimento realista, na qual foram publicados quase todos os capítulos de Relatos de um caçador, que muito contribuiu para a abolição da escravatura do povo russo. O texto apresenta visões impressionistas da natureza, seu clima de melancolia e, principalmente, sua cálida simpatia para com os servos. O livro constituiu um sucesso e seu autor imediatamente colocado na primeira linha dos escritores russos.
Nesta mesma revista, Turgueniev publicou suas primeiras novelas Rudin; Ninho de Fidalgo e Tolstoi alguns capítulos de Infância, Adolescência e Juventude. O Contemporâneo deixou de circular em 1866 por determinação do czar, depois de ter sofrido um atentado.
No Brasil foram publicados vários livros de Turgueniev, alguns como: O Duelo (tradução H. L. Alves e E. Prado, Clube do Livro, 1973); Pais e Filhos (tradução Ivan Emilianovitch, Abril Cultural, 1ª. ed. 1943), é a amarga história de Bazarov, um herói niilista russo. Intelectual materialista nega o amor e a arte, recusa a religião, combate as tradições, tudo submete à experiência científica e acredita nos benefícios de uma revolução total. Bazarov é um rebelde que não aceita nenhum princípio sem exame. O amor, no entanto, o desarma e o conduz à morte. Pais e Filhos, um dos maiores romances políticos de todos os tempos, acaba de ser reeditado no Brasil pela editora Cosac & Naify, 356 páginas, com tradução de Rubens Figueiredo.
Rudin (tradução Elias Davidovich, Global Editora, 1983), foi publicado em 1855 e descreve a história comovente de um russo que não consegue converter os seus sonhos e conhecimentos em ação. Sua vida será assim, um interminável desajustamento. Rudin seria um gênero desconhecido, condenado ao fracasso pela obscuridade ou falta de sorte? Um ambicioso que não consegue alcançar os seus objetivos? Um parasita que termina por se tornar indesejável nos círculos que freqüenta? Ou um sonhador que passa a vida inteira chocando-se com a realidade? Nesta obra de Turgueniev, ele é o símbolo de todas as criaturas que não logram realizar-se na travessia da vida.
O Relógio e Memu (tradução T. Belinky, Scipione, 1997), são dois contos escritos em 1854 o primeiro e o segundo, dois anos depois. Alexei personagem-narrador de O Relógio relata uma história ocorrida durante sua juventude na Rússia do início do século XIX. Ele e seu primo vêem-se envolvidos em várias confusões após Alexei receber um relógio de prata de seu padrinho. Mumu - Guerássim é um surdo-mudo que trabalha para uma senhora rica, voluntariosa, cheia de caprichos e cercada de servos. Marginalizado por todos, Guerássim o solitário se afeiçoa profundamente a uma cadelinha, Mumu. A tirânica senhora decide tomá-la para si, mas, contrariada, ordena a expulsão de Mumu.
Através de metáforas simples, mas de grande poder simbólico, como o relógio de prata e a cadelinha Mumu, Turgueniev nos revela, nos dois contos reunidos nesse volume, o cotidiano da sociedade russa dos tempos finais do czarismo. O primeiro, transcorre no ambiente urbano e relata como a difusão da cobiça por valores materiais solapou as bases da solidariedade humana. O segundo, envolvendo a transferência forçada de um servo do campo para a cidade, descreve o contraste patético entre o sentido de dignidade e de amor a todas as criaturas de que eram capazes os humildes e a atitude fria e calculista dos poderosos. Para Ivan Turgueniev, era imperativo redimir as injustiças sociais para se restaurar a plenitude da condição humana.
Turgueniev foi um romancista com um excepcional sentido de composição literária, contos, novelas, romances, peças de teatro eram não somente bem acolhidas como ansiosamente esperadas. É considerado um dos maiores ficcionistas russos e ainda um dos grandes mestres da prosa: Ninho de Fidalgo (1859); Em Vésperas (1860); Pais e Filhos (1862); Fumo (1867); Terras Virgens (1877); O Primeiro Amor, O Rei Lear da Estepe, e um poema em prosa Umbral, onde evoca a figura de uma mulher revolucionária, baseado em Vera Zasulich, ativista que havia sido julgada e absorvida em 1878 pelo Tribunal, por ter ferido com um tiro o General Trepov, governador de São Petersburgo, dentre outros, asseguram-lhes um lugar ao lado de Dostoievski e Tolstoi.
O romancista morreu em Bougival, perto de Paris, a 22 de agosto de 1883. Conforme desejava foi enterrado em Petersburgo, junto ao túmulo do amigo Bielinsk a quem tanto admirava. Não resta dúvida que ele foi mais espectador do que doutrinário. Suas novelas escritas durante o reinado de Alexandre II, simplesmente descrevem os aspectos da sociedade de seu tempo, mas apesar de tudo, sua obra constitui um precioso diamante para o conhecimento da história social da Rússia do século XIX.
Estimulado pelo crítico literário V. Bielinsk, Ivan Turgueniev escreveu algumas peças baseado na tradição gogoliana, sendo a mais importante delas, Um mês no campo (1870), que coloca o autor entre os precursores do teatro moderno.
Do ponto de vista estético, sofreu decisiva influência de seu amigo Flaubert; em política, foi um liberal, partidário dos costumes ocidentais. Em toda sua obra refletiram os conflitos da fase de transição social, mostrando a vida dura dos camponeses e as posições ideológicas das camadas sociais superiores.
Turgueniev, não era um revolucionário, mas um defensor da liberdade, um democrata e antiescravista em suas criações, revelou ao ocidente a vida da nobreza provinciana russa, crente em Deus e fiel ao czar, toda sua obra é um relato de repugnância pela vida que dolorosamente viveu com toda tragédia do povo russo.

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