segunda-feira, 6 de julho de 2009


Dendê e camarão no caruru de Cosme e Damião

GILFRANCISCO: Jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com


Sincretismo – É a mistura de pensamentos ou opiniões diversas para formar um único. No caso dos cultos afros-brasileiros, assimilação de um orixá, vodun ou divindade bantu a um santo católico, formando uma só divindade. O sincretismo dos orixás-meninos com Cosme e Damião foi o único que ocorreu em sentido inverso, isto é – passou dos santos católicos para os ibejis ou hohovis. Os jeje-nagôs tinham grande apreço pelos gêmeos.
Os escravos pertencentes a essas duas culturas, que aqui aportaram nos séculos XVIII e XIX, encontraram a imagem dos dois santos, pequenos, com túnicas acima dos joelhos, à maneira das crianças da época. Os gêmeos, nas nações da Costa dos Escravos, eram simbolizados por dois pequenos bonecos de madeira escura, atados a um cordel, que cada gêmeo usava sob as vestes, até a morte.
Cosme e Damião desempenharam as mesmas funções que, em outra época, eram dois gêmeos celestes. Pois davam vigor sexual aos homens e fecundidade às mulheres, e na Itália do século XVIII eram oferecidos a Cosme e Damião, como ex-votos, reproduções do membro viril.

Cozinha africana – Nos primeiros candomblés fundados na Bahia surgiu o Terreiro, onde dança os Orixás e Voduns, a fonte onde se banham as iaôs (iniciadas), as àrvores sagradas (onde mora Iroko e Tempo), as casinhas de Exu e de Eguns e a cozinha de Santo. Lá na cozinha, entre panelas de barro, caldeirões antigos e perfumes de dendê e arruda, fazem as iabás (cozinheiras) os pitéus dos deuses negros. Mas, nos atuais terreiros pouco difere da cozinha comum.
Contemporânea, a cozinha africana firmou suas características e elaborou suas técnicas já depois do Brasil povoar-se, segunda metade do século XVI. Todos os pratos vindos d’África foram reelaborados, recriados no Brasil, com os elementos locais e o azeite-de-dendê indispensável que já no século XV era do agrado negro. Luis da Câmara Cascudo em sua “História da alimentação no Brasil” (1967-1968 – 3 vols.) diz que: “essa técnica brasileira do pitéu africano voltou para a África, conservando as cores sápidas da Bahia. Ainda hoje no Daomé e na Nigéria resistem quitutes regionais levados pelos ex-escravos repatriados”. Continuavam sendo denominada comida de brasileiro, moqueca de crustáceos e de peixe, feijoada, mocotó, caruru de quiabos, galinha de caçarola, lombo de porco assado, com rodelinhas de limão, etc.

Gêmeos – Diz-se de cada um de dois ou mais irmãos ou irmãs nascidos no mesmo parto. Os gêmeos mais freqüentes são os gêmeos fraternos, heterozigóticos ou não idênticos, chamados também falsos gêmeos, pela formação simultânea de dois óvulos por dois espermatozóides. Eles podem ser do mesmo sexo ou de sexos opostos. Os gêmeos verdadeiros, idênticos ou monozigóticos resultam de fecundação normal de um único óvulo, por um só espermatozóide, porém o ovo assim fecundado sofre uma clivagem em dois embriões distintos. Os gêmeos monozigóticos são duas cópias idênticas de um mesmo individuo e, portanto são do mesmo sexo. Apresentam com freqüência, ao contrário dos heterozigóticos, uma grande semelhança na sua resistência ou sensibilidade orgânica às doenças de qualquer natureza.
Os filhos de parto duplo têm sido considerados ora benfazejos, ora malfazejos. Entre os babilônios, o nascimento de gêmeos era um mau augúrio, acarretando desgraças; entre vários povos, uma nódoa infamante. Davam a dípara a pecha de adúltera, pois cada filho deveria pertencer forçosamente a um pai diferente. Em muitas tribos, mãe e filhos eram banidos para além dos limites da aldeia e isolados numa cabana, onde ninguém poderia entrar, nem mesmo o xamã em casa de doença. Para os abissínios cristãos, gerar gêmeos era um pecado.
Entre os negros africanos o infanticídio de gêmeos foi comum. Os bantos da África do Sul, antigamente, matavam os dois gêmeos; o mesmo fazia os ibos, da região leste da Libéria; os bosquímanos do deserto de Kalahari e os hotentotes sacrificavam apenas um. O mito dos gêmeos está sempre, e universalmente, ligado aos mistérios da conservação e fecundação vital. Entre nossos índios o infanticídio é prática normal em várias tribos quando nascem gêmeos.

Cosme e Damião – Filhos de uma família que viveu na Arábia, eram cinco irmãos, e dois deles gêmeos. Mesmo vivendo num país muçulmano, a família era cristã. Os gêmeos tornaram-se médicos exerciam a profissão sem visar ao lucro financeiro e nada cobravam dos pacientes. Chamados de anargiros (pobres, sem dinheiro) sofriam o repúdio do império que romanizava o “mundo”.
Médicos exerceram sua arte na Síria. Cristãos, tornaram-se mártires sob Diocleciano (245-313), imperador romano que dizimava os cristãos brutamente em ritos sádicos de assassinato por esquartejamento, não poupou sua família. Denunciados pelos procônsul Lísias, foram torturados e por fim decapitados em Egélia, na Cilícia, a 27 de setembro de 287. Nessa data as famílias oferecem uma refeição ritual a crianças (caruru dos meninos) entre cânticos em sua homenagem.
Sendo pontífice São Félix, os despojos dos dois mártires foram levados para Roma e depositados na igreja que tomou os seus nomes. O culto europeu de Cosme e Damião foi trazido ao Brasil pelos portugueses. Em 1530, Duarte coelho, donatário da Capitania de Pernambuco, construiu uma igreja em honra dos santos, na localidade de Igaraçu, que D. João VI, mais tarde, denominaria “a mui nobre, sempre leal e mais antiga vila de Sancta Cruz de S. Cosme e S. Damião”.
Santos mártires católicos, sincretizados inteiramente a Ibêji Os Ibejis pertencem aos cultos iorubas ou deles derivados. O próprio vocabulário ibêji ou ibêje é nagô, significando: ibi, “nascimento” e eji, “dois”. Os jejes chamam hohovis. Entre nós há várias denominações: beijada, beije (Recife), bejada, bêjes, crianças, dois-dois (designação popular do parto duplo), meninos, santos-gêmeos, Tosá e Tosé (Maranhão). Saudação: ia-ô! Segundo Edison Carneiro em um dos mais importantes livros sobre o assunto, “Candomblés na Bahia” (1954), o ibêje dos nagôs “são objeto de grande culto, essencialmente doméstico, familiar, na Bahia. Muitas famílias têm duas pequenas velas sempre acessas diante das imagens dos meninos: os gêmeos são casamenteiros, ajudas a encontrar objetos perdidos, protegem contra as doenças, abrem os caminhos, – mudam para melhor a sorte dos devotos”.

Caruru – Comida de Santo, alimento votivo, preparado ritualmente e oferecido aos Orixás nas religiões afro-brasileiras, como umbanda e candomblé. Tal como se conhece presentemente, é prato africano: quiabo cortado miúdo e cozido em caldo de peixe seco e temperado com sal, um dente de alho, cebola ralada, camarão seco e batido no pano, pimenta ralada, quioiô, castanha assada e moída, catassol torrado e azeite-de-dendê. Não se cozinha caruru em panela de alumínio nem panela de esmalte quebrado, pois fica escuro com os caroços arrozeados. Os quiabos devem ser cortados em cruz no sentido longitudinal e depois então em redelinhas bem finas. O quiabo deve ser bem enxuto antes de ser cortado, para não babar. Se depois de fervido persistir em babar, corta-se a baba com pingos de limão. As cozinheiras antigas cortavam a baba com a colher de pau numa técnica toda especial. O caruru está bom de tirar do fogo quando o caroço do quiabo fica cor de rosa. Joga-se numa poeira de farinha de mandioca ou flor de milho por cima e mexe-se bem para engrossar. Despeja-se numa tigela ou deixa-se na própria panela de barro, pondo-se mais azeite por cima. Come-se com arroz, acaçá, bola de inhame, farinha seca, etc.
Nesse dia 27 de setembro, os devotos de Cosme e Damião, pagando promessa por ter alguma graça alcançada, oferece o caruru para 7 meninos. Reúne as crianças em círculo todas sentadas no chão em volta de uma grande gamela de madeira ou barro contendo vários ingredientes que acompanha o caruru: feijão preto, feijão branco, feijão fradinho, acarajé, abará, pipoca, milho branco, farofa de dendê, galinha, vatapá e pequenos cubos de cana e rapadura. E toma-se um pouco de aluá.
Para os devotos, simpatizantes ou simplesmente comilões, não importa a crença o fato é que no mês de setembro, o prato da vez em Salvador é o caruru de Cosme e Damião. Os apreciadores do prato típico têm lugar certo para degustá-lo de graça: Caruru dos Sete Poetas, Mercado das Sete Portas, Instituto de Artesanato Mauá, Mercado de Santa Bárbara, Mercado Modelo, entre outros.

Bebida de Logun-Edé – Orixá filho de Ibualama ou Inlé (Oxossi) e Oxum Panda. Reúne as naturezas do pai e da mãe, sendo seis meses jovem caçador e, nos outros seis, bela ninfa dos bosques que só come peixe. Servida no caruru de Cosminho, o famoso aluá ou gengibirra faz-se desta forma: Se pega uma vasilha grande e nele se coloca uma boa quantidade de água para ferver. Põe-se dentro uma porção de milho, de arroz e cascas de abacaxi. Deixa-se fermentar por alguns dias. Alguns colacam rapadura dentro, para dar um gosto mais aceitável. Depois de três dias de fermentação, côa-se o líquido e serve-se ao Orixá. Alguns servem esta bebida em coités, outros preferem beber o aluá na quenga de coco.
O padre Vicente Ferreira Pires, em 1797, bebe no Daomé (atual Beni) “umas asseadas cuias cheias de arvá, que é uma massa de arroz desfeito em água”. Manuel Querino, sabedor da cultura negra na Bahia, fala no aluá ou aruá de milho, ou de casca de abacaxi não mencionando o de arroz. A historiadora baiana Hildegardes Vianna registra em “A Cozinha Baiana – seu folclore, suas receitas” (1955) a receita para fazer aluá ou aruá de milho.





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