"Escrevo pelo que me espanta e me comove" (Ferreira Gullar)
Enviado pelo Cinform (SE) ao Rio de Janeiro para receber o Prêmio Veríssimo de Melo, categoria "pesquisa e bibliografia", concedido pela União Brasileira de Escritores, pelo livro Musa Capenga – poemas de Edison Carneiro, o jornalista Gilfrancisco entrevistou com exclusividade o poeta Ferreira Gullar que completará em, 2010, oitenta anos de vida.
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Nascido na Rua dos Prazeres, 497 em São Luis, Maranhão, em 10 de setembro de 1930, José Ribamar Ferreira Gullar, poeta, crítico, dramaturgo, tradutor, contista, ensaísta e jornalista, muito cedo abandonou as brincadeiras de menino para se dedicar aos livros e a poesia. Na capital do país, aos 21 anos, logo publicaria A Luta Corporal, livro que abriu caminho para o movimento da poesia concretista do qual participou. Abandonando as vanguardas, assumiu uma nova atitude literária, engajada política e socialmente. Participando da resistência à ditadura militar, que se instaurou no Brasil em 1964, o poeta está sempre experimentando uma linguagem poética inovadora e comprometida na inesgotável busca do entendimento do homem. Perseguido, processado, preso e exilado, Gullar viveu em vários paises.
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Cinform – Poeta vamos começar do começo! Seus primeiros passos na literatura, o que você lia no Maranhão e quais poetas lhe influenciaram?
Ferreira Gullar – Não tem nada especial. Meu interesse pela poesia nasceu dos livros de escola, de ler as antologias poéticas. Eu tinha um interesse mais acentuado que outros alunos do mesmo colégio. Nasceu de ler esses poetas e do jornalzinho que começou a publicar vários poemas dos alunos. Fui fazendo uma poesia rimada, metrificada, com certo jeito parnasiano, foi assim que nasceu aos pouco.
Cinform – Como muitos jovens poetas que desejam ver seus livros impressos, você custeou as despesas da edição de "Um pouco acima do chão", publicado em 1949. Como ocorreu esse desejo de ser poeta?
Ferreira Gullar – Esse livro eu publiquei em São Luís, são poemas que foram escritos entre os dezoito e dezenove anos, época em que eu já trabalhava como locutor na Rádio Timbira. Guardei algum dinheiro e minha mãe me ajudou bancando o resto. O livro foi publicado assim numa pequena gráfica que ficava no fundo de uma igreja, na Rua do Egito. Então, foi assim que saiu esse primeiro livro, como todos os livros, isso ocorria não só no Maranhão. Mesmo mais tarde, alguns poetas, até como Drummond estava custeando seus livros, segundo ou terceiro livro. Naquela época, editora para publicar poesia era uma coisa muito rara.
Cinform – E sua vinda para o Rio de Janeiro e a nova profissão de jornalista?
Ferreira Gullar – Eu vim para o Rio em 1951, tinha 21 anos. Vim pelo interesse em participar da vida cultural e artística, pois São Luís, naquela época, tinha muito pouca informação, com pouca atividade cultural e eu tinha interesse em participar da vida cultural do país. O Rio de Janeiro, naquela época, era metrópole, a capital do país, e era o centro cultural mais importante. Por isso eu vim, conseguir um emprego no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários, numa revista que eles faziam, os irmãos Condé (José Elísio ) sobretudo o João Conde, diretor do Jornal de Letras (mensário de literatura e artes), no qual eu tinha ganho um concurso. Eles, no ano anterior haviam constituído um concurso de poesia de âmbito nacional e eu ganhei o primeiro lugar nesse concurso e isso também me animou a vir morar no Rio. Entrei em contato com João Conde e ele era o diretor dessa revista do IAPC e me arranjou um ‘bico’ para ficar trabalhando na revista, esse foi meu primeiro emprego.
Cinform – Na verdade, sua estréia para o grande público brasileiro ocorreu em 1954 com "A Luta Corporal", ainda custeado por você, mas impresso na Gráfica da revista O Cruzeiro. Fale um pouco dessa edição.
Ferreira Gullar – Em 1954, eu fui convidado a trabalhar na revista O Cruzeiro no setor de revisão de texto que era dirigido pelo romancista baiano Herberto Salles. Com isso eu dividia meu tempo entre a revista O Cruzeiro e a revista do IAPC, que mantinha meu salariozinho pequeno, mas um salário um pouco melhor da revista O Cruzeiros e com isso me animei a publicar meu segundo livro, que foi impresso na gráfica da revista O Cruzeiro. A própria gráfica foi quem editou o livro. Eu desenhei e paginei o livro. A primeira edição (bastante diferente da 2ª ed. de José Álvaro Editor 1966), original, com páginas em branco, com espacejamento, uma série de coisas que eu tinha bolado porque fazia parte da minha visão, da minha experiência poética com a poesia espacializada, que depois daria origem à poesia concreta.
Cinform – Foi isso que chamou à atenção dos irmãos Campos (Augusto e Haroldo) e Décio Pignatari?
Ferreira Gullar – Quando eles leram o livro, o que chamou mais atenção neles era que o livro terminava com a implosão da linguagem, desintegração da sintaxe e uma implosão das palavras, dos vocábulos, esse fato chamou a atenção porque era um livro inusitado. A poesia brasileira naquela altura era dominada pela chamada "Geração de 45", uma geração formalista, oposto do que eu tinha feito, era uma geração que voltava ao soneto, voltava às redondilhas, voltava ao verso metrificado e rimado, era o contrário do movimento modernista inicial, que abandonou todas as formas e foi para o verso livre. Então aquilo era um retorno a essas formas anteriores clássicas. O meu livro era o contrário disso, era uma implosão. Os irmãos Campos e o Décio Pignatari, que queriam fazer uma nova poesia, por não se contentarem com a poesia que estava sendo feita pela "Geração de 45", também não sabiam qual era o caminho. Então meu livro ao desintegrar a linguagem, pelo menos deu a eles, segundo a conversa que tive com Augusto de Campos comigo, essa desintegração da linguagem tornou inviável a continuação de uma poesia que não fosse com uma nova forma.
Cinform – E como foi resolvida a questão?
Ferreira Gullar – Então nós começamos a dialogar e nasceu a poesia concreta a partir do nosso diálogo. Eu não sou o criador da poesia concreta, mas com certas idéias que eu passei a eles nessas conversas, tornou possível a criação dessa poesia concreta, porque eles, inclusive, falavam em criar um novo verso. Eu falei um novo verso não, se eu acabei de desintegrar a linguagem, não pode ter novo verso, tem que ser nova sintaxe. Qual será essa sintaxe? Eles bolaram nova sintaxe que era a sintaxe espacial, não mais o discurso, mas a junção das palavras dos espaços, assim nasceu a Poesia Concreta.
Cinform – Poetas estrangeiros como Mallarmé, Ezra Pound, Cummings, Verlaine foram traduzidos a partir dos anos 50 pelos Campos, você já tinha conhecimentos de textos desses poetas no Maranhão?
Ferreira Gullar – No Maranhão, eu tinha conhecimento de alguma coisa mais esporádica de um ou outro livro que por acaso havia chegado as minhas mãos. Quando eu entrei em contato com os Campos, eles não conheciam Mallarmé. O interesse deles era muito mais pela poesia inglesa, era mais por Ezra Pound e James Joyce. O Mallarmé fui eu que introduzir para eles, inclusive "Um Coup de Dês" que eles não conheciam. Ai eles passaram a se interessar. Por exemplo, eles desprezavam Oswald de Andrade, a primeira conversa com Augusto, quando ele falou no chamado "elenco de autores", usava essa expressão, o nossa elenco de autores, ele mencionava uma série de autores Ezra Pound, Joyce, João Cabral , Drummond e ficava por ai. Eu falei assim: o Oswald é um poeta de certo modo mais inovador em certos aspectos mais do que esses que você citou. Aí o Augusto falou: o Oswald é um esculhambado. Bom, se ele é esculhambado, eu não sei, estou falando da poesia dele e não da pessoa Oswald. Eu também não acho que ele seja uma pessoa esculhambada, conheço ele inclusive.
Cinform – Com foi esse encontro?
Ferreira Gullar – Veio me visitar aqui no Rio, porque tinha lido "A Luta Corporal" no original. Foi o seguinte: Oliveira Basto foi a São Paulo e levou para ele. Oswald se entusiasmou pelo livro antes de ser publicado e quando veio ao Rio de Janeiro, Oliveira Bastos o levou a minha casa, onde eu morava com uma companheira ali na Glória, perto da Rua Francisco Bicalha. O encontro ocorreu no dia do meu aniversário, era domingo. Tocou a campainha, quando fui abrir a porta, era Oswald de Andrade. Tomei um susto, de manga de camisa. Eu tinha essa relação com Oswald de Andrade e gostava dele, por isso que o Bastos levou o livro para ele ler. Porque eu tinha falado com o Bastos sobre Oswald de Andrade, e também havia comprado um livro seu num sebo, um livro de poesia e o Mário Pedrosa tinha me dado para ler o "Pau Brasil" e eu achava a poesia dele muito inovadora e falei isso com o Bastos, que indo a São Paulo procurou Oswald e começou uma relação.
Cinform – E a conversa com Augusto o convenceu?
Ferreira Gullar – Quando o Augusto conversou comigo, apesar de morar em São Paulo, ele não tinha conhecimento da poesia de Oswald de Andrade, só tinha conhecimento do Oswald de Andrade esculhambado, piadista. Então eu falei: você está equivocado, o Oswald (até usei essa expressão) possui uma linguagem dele, ademais ele é jovem, como se fosse uma folha verde, uma coisa verde, uma plantinha verde, uma coisa diferente, acho que se a gente está querendo fazer uma outra poesia, precisa ler o Oswald. A bem de a verdade, eles leram e se entusiasmaram, valorizaram ao ponto de redescobri-lo e revalorizar o Oswald, que estava esquecido, tanto que eu comprei o livro dele no sebo, foi a primeira coisa que li de Oswald "Serafim Ponte Grande" (1933). Eu comprei no sebo da Livraria São José, estava um amontoado no chão, uma série de livros sendo vendidos ao preço de três vinténs. Dessa conversa surgiu isso e o Oswald acabou sendo valorizado pelos irmãos Campos.
Cinform – E sua militância participativa no CPC?
Ferreira Gullar – O Centro Popular de Cultura é uma invenção de Vianinha (Oduvaldo Viana Filho,) que pertencia antes ao Teatro de arena, iniciador do teatro político, mais comprometido com a evolução, com as mudanças da sociedade brasileira, era um teatro novo em contraposição ao Teatro Brasileiro de Comédia – TBC que era o teatro de Adolfo Celi, Ziembinski, Paulo Autran, enquanto o Teatro de Arena era um teatro de jovens de posição de esquerda e que pensava fazer um espetáculo visando um público diferente do público do TBC, um público mais pobre, mais proletário. Só que eles depois perceberam que gente pobre não vai ao teatro, não tem dinheiro nem hábito e isso criou uma divisão e o Vianinha não se conformava com a idéia de ficar fazendo espetáculos sobre operário para pequena burguesia assistir. Então ele se afastou do Teatro de Arena, veio pro Rio e criou um grupo para fazer teatro de graça, achando que se tivesse bilheteria o povão não iria. Daí surgiu o CPC. Como queria fazer tudo de graça, tinha de ter o apoio de alguma instituição para a própria sobrevivência do grupo. Veio a idéia de se juntar a UNE – União Nacional dos Estudantes. A UNE era dirigida na época pela AP – Ação Popular da juventude católica e o Partido Comunista era aliado na direção da UNE. O que a UNE deu ao CPC foi o local da sede que ficava na Praia do Flamengo, uma saleta onde a gente se reunia. Tinha um cara da direção do Partido que funcionava como assistente. Ia para discutir, trazer informações, orientação política, dizer o que estava acontecendo na área política, qual a avaliação que o partido fazia da situação política, mas o CPC era autônomo não era orientado pelo Partido, nem recebia dinheiro de ninguém. A própria UNE no seu orçamento incluiu uma ajuda que o governo dava para a instituição, repassando uma pequena parte para subvencionar as atividades do CPC, como montagem de espetáculos que eram na sua maioria montados nos Congressos da UNE, onde os estudantes que realizavam às vezes no Rio, Belo Horizonte e Bahia. O CPC realizou algumas publicações de cordéis, publiquei na época quatro. Eventualmente se publicava alguns livros de interesses do movimento estudantil, porque a UNE tinha uma pequena gráfica.
Cinform – Seu ensaio "Vanguarda e Subdesenvolvimento" (1969) provocou uma grande polêmica pela sua visão com conceitos inovadores na época. Você pensa em escrever um novo texto teórico sobre o assunto ou ele atualmente não existe no Brasil?
Ferreira Gullar – Veja bem, aquele livro é um livro que diz srespeito a um momento da cultura e arte brasileira, um momento específico que eu tentei analisar e me situar diante dele. É uma visão marxista da questão cultural, na última edição do livro (2002) eu faço alguns reparos às teses que defendo no livro, hoje eu não concordo com todas as teses que estão expostas no livro, mas no fundamental eu acho que o livro está certo. Quando ele chama à atenção do fato de uma vanguarda internacional à importação e à crítica de movimentos internacionais, estéticos de vanguarda, na verdade eles não ajudam ao desenvolvimento de uma arte autônoma. Um exemplo mais fácil: quando o rock tomou conta do mundo, a música popular de vários paises acabou. No Brasil, não acabou, embora tenha sofrido muito por pressão dessa música, porque houve uma geração que depois passou pro rock, só não acabou porque a tradição brasileira era muito forte, mas em muitos países acabou praticamente.
Cinform – Você é contra a essa invasão cultural ?
Ferreira Gullar – Não é que eu seja contra a música internacional, contra a arte que é feita em outros paises, acho que a arte tem um caráter universal e não se pode fechar os olhos e ignorar ou negar - o que não pode é fazer com que a influência externa mate, cale a voz das coisas que nascem aqui, da criatividade autônoma, porque quanto mais autonomia tem os artistas dos diferentes países, mais rica será a cultura e a arte do mundo inteiro. Se existe uma arte argentina própria da Argentina, uma arte brasileira própria do Brasil, não é que seja nacionalista, mas que nasça até com hostilidade com a contemporaneidade, mas que tenha raízes aqui, que não seja apenas imitação de uma coisa que venha de fora e que isso realmente estava acontecendo. Mas a razão principal é essa arte negativa "niilista" para destruir a própria arte, como a Bienal que está sendo aberta, chegou sem obra. É uma Bienal sem obra e isso já mostra tudo. Ontem eu assistia a uma entrevista do curador da Bienal, onde ele falou: pois é, antigamente as paredes estavam cheias de obras, hoje a gente pergunta o que é melhor é ter obras ou não ter obras, eu nunca vi isso. Se você vai fazer uma exposição de arte, coloca-se uma questão se deve ter obra de arte eu não entendo. Então não é mais arte, no fundo o que ele está dizendo é que isso que eles expõem não é mais arte, não interessa ele expor, é isso que ele está dizendo. Essa bienal tem os dias contados, isso é uma coisa velha, ultrapassada, não tem mais sentido, é a falsa vanguarda, a própria Bienal é uma instituição de vanguarda, tanto que ela não pode negar, registrar nada, quanto mais louca for a proposta que o artista faça para ela, não pode rejeitar porque ela tem medo de ficar na retaguarda. Por isso aceita tudo, porque ela é de vanguarda, também a instituição é de vanguarda, ela nasceu para ser de vanguarda, são as coisas mais absurdas. Agora nessa Bienal um cara fez um tobogã, ele vai até o último andar do prédio e desce de tobogã, é a obra dele. Quer dizer, tobogã no parque de diversão é "tobogã", mas lá na Bienal é "arte". É a instituição que faz um tobogã virar uma obra de arte, isso é uma palhaçada. Então era isso que eu combatia. Alguns aspectos ortodoxos da visão marxista que estão presentes no livro, também estão equivocadas, eu acho que não é isso, eu ainda não tinha uma visão crítica de determinados problemas que depois pude observá-los. Hoje eu olho criticamente as coisas que escrevi anteriormente.
Cinform – "Poema Sujo" (1976), livro publicado em vários países, nasceu no exílio. O que levou o poeta Ferreira Gullar a essa ruptura lingüística, política e memorialista?
Ferreira Gullar – Poema Sujo é um dos poucos livros, talvez o único livro de poesia que tenha sido best-seller, porque ele estava na lista da revista Veja, entre os livros mais vendidos permanecendo na lista por várias semanas, foi uma coisa excepcional. Eu escrevi o livro em condições muito dramáticas, difícil porque eu estava exilado na Argentina. Já depois de vários anos de exílio e bastante apreensivo com o que estava acontecendo na Argentina, eu havia saído do Chile onde tinha ocorrido a queda do presidente Salvador Allender e tinha ido para Argentina onde começava um movimento para também derrubar Isabelita, do governo eleito. Então eu via compreensão, eu tinha notícias também dessa ligação da polícia brasileira, da polícia secreta militar, juntas com os argentinos e chilenos uma rede para prender os chamados subversivos como nós e por isso eu vivia numa situação difícil, não tinha para onde ir, meu passaporte tinha sido cancelado pelo Itamaraty, então eu escrevi o poema assim, como eu costumo dizer: como se eu escrevesse a última coisa da vida, enquanto é tempo eu vou escrever, que me resta escrever. O poema foi assim.
Cinform – Hoje o "Poema Sujo" encontra-se na13 edição. Em 2002, comemorou-se 30 anos da publicação da obra e saiu uma edição em sua homenagem, trazendo como brinde um CD com o poema lido na voz do poeta, patrocinado pelo Instituto Moreira Salles. Como ocorreu essa parceria com a José Olympio?
Ferreira Gullar – O Instituto Moreira Salles fez um pequeno documentário comigo que é a leitura do poema, registro filmado. Eu entro no auditório, eles me acompanham, em seguida vou até o microfone e começa então a leitura do poema. Quando, José Olympio teve a idéia de fazer a edição junto com o CD, eu falei: em vez de gravar outra vez, o poema existe na trilha sonora do filme. Ai eles falaram com o Instituto que cedeu a gravação do poema somente para esta edição. A gravação do poema é a mesma que está no filme.
Cinform – Seu livro de contos "Cidades Inventadas" (1996) é uma de suas obras menos conhecidas. O que você atribui a esse não entendimento da crítica e dos professores universitários a não adotá-lo nos cursos de letras.
Ferreira Gullar – As pessoas que leram o livro gostam muito, mas eu acho, talvez pelo fato de ser poeta. Primeiro não existe crítica literária no país, o pouco que existe é uma coisa acadêmica e pouco sensível ao que é diferente. Esse pessoal estabelece determinados critérios e fica atuando dentro daquilo, são incapazes de perceber. Por exemplo "Cidades Inventadas", modesta parte é um livro bastante inovador, o primeiro conto desse livro Odon foi escrito em 1955 e ele tem uma visão da América Latina e do Brasil, enfim do que é a vida nas cidades urbanas, o que é bastante inovadora e que precede o Macondo do romancista Gabriel Garcia Márquez, não é o Macondo, precedo o Macondo que é anterior. Eu não tive maiores pretensões, escrevi aquilo como faço as minhas coisas, pelo prazer de escrever, pela necessidade de escrever, não faço com propósito de fazer vanguarda, inovar, eu faço pela necessidade. Então "Cidades Inventadas" é um estranho livro de contos porque não tem personagens, as personagens são cidades que eu inventei, por isso ele é estranho e também é uma falsa história. Foi escrito com se fosse um historiador que estivesse escrevendo aquelas histórias, tanto que têm notas de pé-de-página, referências bibliográficas, mas é tudo mentira, tudo falso. Os livros citados não são livros, é tudo falso, tudo inventado. Agora as pessoas que leram gostaram, mas os críticos e professores não se deram o trabalho de ler.
Cinform – Como é Ferreira Gullar, que é poeta, ser apresentador de um programa de entrevistas (Gerações), num canal de TV fechada?
Ferreira Gullar – Eu sempre tive diferentes atividades, porque não dá para viver de poesia. Fui locutor de rádio no Maranhão, depois jornalista profissional no Rio de Janeiro e essa é minha profissão e a vida inteira eu trabalhei em jornal até me aposentar. Fui durante muito tempo copy-desk, chefe de copy-desk de jornal, ajudei a transformação do Jornal do Brasil, a renovação do Jornal do Brasil, continuei trabalhando em outros jornais e na televisão eu fui chamado pelo Dias Gomes quando voltei do exílio para fazer teledramaturgia junto com ele. Portanto a minha ligação com a televisão também é anterior a esse programa, não como apresentador, mas trabalhando na televisão. Um amigo meu que é pernambucano, Roberto Viana, empresário da área de comunicação e fã da minha poesia, assinou um contrato com a STV (Televisão Sesc/Senac) para uma série de programas chamados "Gerações".
E a idéia dele era que eu, de uma geração mais velha, dialogasse com pessoas de diferentes gerações, essa era a idéia inicial do programa, mas eu fiz durante três anos. Gravava quatro programas por semana e era apresentado um por mês, mas faz muitos anos que isso terminou que deixei de gravar. Sei que o programa continua sendo reprisado por várias emissoras. Você é capturado por ele e passa a ser usado, não se passa um dia que não apareça alguém para me dizer que assistiu o programa, antes era exibido na TV Educativa, depois passou para TV Senado, ouvi alguém dizer que estava na Rede Brasil, acho que há um contrato entre eles mas não nos informam nada. Tenho noticias porque as pessoas gostam do programa, porque eu sou o que menos fala no programa. Às vezes digo brincando ser o contrário do Jô! Quando entrevisto as pessoas, eu pergunto e a pessoa fala, só volto a perguntar se o que ele respondeu dá cabimento, eu ali sou o público, que quer saber, quer esclarecer as coisas que estão sendo conversadas, ali eu não fico pregando, a não ser um momento ou outro quando tem uma idéias que eu acho que é interessante fazer uma intervenção, ampliar a discussão é que eu faço uma interferência um pouco mais demorada. Mas, na maior parte do tempo, sou o público ouvindo e questionando as pessoas que estão sendo entrevistadas.
Cinform – Você não é afeito a prefaciar livros de poetas emergentes, mas já escreveu dezenas de críticas literárias e textos sobre artes que foram publicados em diversos periódicos. Já pensou em reunir esse material em livro. ?
Ferreira Gullar – Evito fazer apresentações porque isso me cria muitos problemas, eu não posso ficar o tempo todo lendo livros dos outros e fazendo prefácios se não eu não trabalho. O material de artes plásticas uma parte já está reunida. Atualmente colaboro na revista Continente, de Pernambuco, onde escrevo sobre artes plásticas. Os artigos que saíram em Continente ainda não estão reunidos em livros. Mas os artigos que foram publicados em outros lugares há mais tempo já foram reunidos em livro. Recentemente fui informado que a José Olympio pretende fazer uma edição dos textos sobre artes que tenho publicados na revista Continente. A proposta está sendo estudada, eu ainda estou fazendo uma seleção para ver. As minhas crônicas colaboradas na Folha de São Paulo foram publicadas no livro "Resmungos", pela Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, um livro de formato grande, encadernado com ilustrações do ilustrador da época que era Antonio Henrique Amaral, esse inclusive ganhou o Prêmio Jabuti. Em 2001, a Editora Ática publicou "O Menino e o arco-íris", na coleção "Para Gostar de Ler", uma seleção de crônicas antigas para jovens. Em 2006, foi a vez da Editora Global que publicou uma antologia das minhas crônicas, um livro com quase trezentas páginas.
Cinform – Atualmente a Literatura de Cordel tem obtido grande divulgação na mídia. Está presente nas escolas de 1º e 2º graus e nos concursos de vestibulares. Você não acha oportuno a re-edição dos seus cordéis (1962-1967) separadamente do volume de "Toda Poesia"? Por que não editar um único volume dos cordéis: João-Boa-Morte, cabra marcado para morrer; Quem matou Aparecida; Peleja de Zé Molesta com Tio San e História de um valente?
Ferreira Gullar – É, Gilfrancisco, eu não tinha pensado nessa possibilidade. Como você sabe, todos eles foram publicados em "Toda Poesia". A Editora José Olympio é quem publica minha obra e eu sugeri que se fizesse além do volume de "Toda Poesia", fizesse também separadamente as edições dos diferentes livros, para viabilizar a compra, até porque pessoas que já tenham dois livros teriam que comprar tudo de novo, não é justo, por isso sugerir a publicação separadamente de cada livro. Você tem Dentro da Noite Veloz (separado), Barulhos (separado), Poema Sujo (separado), Na Vertigem do Dia (separado), Crime na flora (separado), ou seja, todos esses livros estão separados. Os cordéis realmente nunca foram editados separadamente, esse sua sugestão é bem vinda, eu vou falar com a Maria Amélia, diretora de edições da José Olympio, talvez fosse uma coisa interessante.
Cinform – Você foi parceiro de Caetano Veloso com o poema "Onde Andarás", que faz parte do seu primeiro LP individual prensado em 1968. Em que circunstância ocorreu a parceria e por que não houve continuidade como a estabelecida com Raimundo Fagner com quem tem vários poemas musicados: Traduzir-se; Me Leve – cantiga pra não morrer; Rainha da vida. Contigo e outras?
Ferreira Gullar – Essa parceria não nasceu de uma relação minha com Caetano. Foi a Maria Bethânia que me pediu, se eu gostaria de escrever para ela duas letras de fossa, de dor-de-cotovelo que ela queria gravar no seu disco de estréia. Então fiz e entreguei a ela duas letras, uma é "Onde Andarás" e a outra é um poema que também é do mesmo livro, que eu adaptei para servir como letra, porque como poema era muito longo. Mas Caetano só musicou uma delas, o outro poema eu acho que inspirou "Alegria Alegria", porque fala "atravessa a rua, entra no cinema" é um poema urbano, que fala exatamente da cidade e o enfoque é o mesmo e o fato dele não ter posto música na minha letra e ter escrito "Alegria Alegria" dá a impressão de que ele achou melhor criar uma letra sobre aquele assunto. Existe na música "Alegria Alegria" uma expressão que é de um poema meu "o sol se reparte em crimes" isso é de um poema que diz assim: "A tarde se reparte em yorgut, coalhada, copos de leites" esse uso do verbo repartir nesse sentido é do poema "Na Leiteiria". "A tarde se reparte em copos de leite", "o sol se reparte em crimes/espaçonaves guerrilhas". Tudo bem, a função da poesia é essa, o poeta inventa as expressões e o artista popular, o compositor não tem essa função - é muito mais a de comunicar de maneira ampla com o público, não é de mudar a linguagem, de reinventar a linguagem isso é mais dos poetas. O caso do Fagner é diferente, ele me procurou, ele buscou meus poemas e nos tornamos amigos, eu gosto muito dele, tenho uma grande amizade por esse cearense. De vez em quando ele me liga ou me escreve, até me pediu outro dia para que eu colocasse letras numas músicas que ele enviou num cd, por problemas técnicos a mídia não funcionou ficando eu impossibilitado de ouvir as músicas. Mas houve um impedimento, primeiro que eu não tenho muita capacidade de colocar letras em música, o único caso que conseguir isso de maneira bastante satisfatória foi o "Trenzinho do Caipira" de Villa Lobos. Na verdade eu tenho dificuldade, primeiro porque eu fico sem saber que assunto é, porque não escrevo com facilidade. Eu, em geral, sou levado a escrever por alguma coisa que me espanta, que me surpreende, que me comove. Pegar uma música e saber que sentido tem aquilo... eu não sei que sentido tem aquela música. A música tudo bem, pela melodia a gente se guia, mas o que vou escrever? Como é que eu vou transformar aquilo em palavras, eu não consigo é muito difícil. Isso é coisa pro Caetano e Chico, eles entendem disso. O Capinan tem uma experiência de letrista que não tenho é um outro departamento.
Cinform – Poeta, em 2010, você completa oitenta anos. Já foi procurado por alguma instituição de ensino superior ou órgão governamental para organizar e promover um evento em sua homenagem?
Ferreira Gullar – Acho que ninguém está pensando nisso nem mesmo eu, e nem fui procurado por ninguém. Sinceramente não estou preocupado com isso. Quando eu fiz setenta anos, um amigo meu que trabalha nessa área de promoções junto com o Museu de Arte Moderna do Rio, fez uma homenagem, em que participaram Adriana Calcanhoto, a nossa grande atriz Fernanda Montenegro que recitou alguns poemas meus. Foi uma homenagem bonita e havia ainda uma exposição de vinte seis artistas, que me presentearam a coleção "Ferreira Gullar", alguns como João Câmara, Siron Franco, Amilca de Castro. Eu doei essa coleção ao Museu de Arte Moderna do Rio. Ao invés de ser presenteado doei as vinte seis obras ao MAM e até hoje o Museu não consigna em uma relação de acervo as obras. É uma coisa inteiramente estranha, eu doei as obras e o MAM nunca publicou a relação dessas obras da coleção "Ferreira Gullar", tenho até medo das obras desaparecerem. Como o Museu não consigna a presença das obras, eu preciso saber o que está acontecendo, porque já ouve caso de obras desaparecerem no Museu, uma coleção de gravuras de Roberto De Lamonica doada a esta instituição quando encontrava-se doente em Nova York, entregue pela artista e gravadora Tereza Miranda, sumiu no ano seguinte. Por esse motivo é que eu temo com o que possa acontecer a coleção "Ferreira Gullar".