domingo, 27 de junho de 2010

1964: OS MILITARES NO PODER E SEUS REFLEXOS EM SERGIPE

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com


Existem razões de ordem econômica e política que, entrelaçadas, explicam o movimento militar de 1964. As razões econômicas resultam de um quadro deteriorado em que a inflação chegava a quase 100% anuais, havia descontrole das contas do governo e também no setor externo da economia. Do ponto de vista político, ocorreu o empate de diferentes forças que, na disputa do poder, acabaram se inibindo. Muita gente fala de paralisia do Congresso, pois ele praticamente deixou de funcionar. Ao lado disso, setores militares e civis estavam convencidos de que era preciso interromper o regime populista de João Goulart. Todos esses fatores explicam o movimento militar de 1964, assim como uma série de ações impensadas, como o comício da Central, no Rio de Janeiro, em que se anunciaram as reformas sem que houvesse uma capacidade efetiva de realizá-las, o golpe acabou acontecendo.

Em 31 de março de 1964, um movimento político-militar derrubou o governo constitucional de João Goulart (1919-1976); era a “revolução de 64”. No dia 2 de abril, o presidente da Câmara, Pascoal Ranieri Mazzilli, foi convocado pelo Congresso para assumir provisoriamente a presidência da República. Os ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica, formaram um comando militar que, em 9 de abril editou o ato Institucional nº1. Declarando mantida a Constituição de 1946, esse ato determinou a realização de eleição presidencial e vice-presidencial pelo Congresso dentro de dois dias, superando também certas garantias Constitucionais.
Vários políticos e militares, que não se identificavam com o regime instalado, tiveram seus direitos políticos cassados, iniciando-se um período de repressão às forças democráticas brasileiras, sobretudo às organizações de caráter socialista. O marechal Castelo Branco, eleito presidente da República pelo Congresso em 11 de abril e empossado no dia 15, desenvolveu um governo que teve como meta principal a estabilidade financeira.
Em 31 de março, o governador Seixas Dória estava ausente de Sergipe, na ocasião participando de reuniões políticas no Rio de Janeiro, mas chegou à Aracaju no início da noite, e dessa forma o vice-governador era Sebastião Celso de Carvalho (PSD) o governador em exercício no Estado.
Simpatizante com o projeto reformista do presidente João Goulart, na noite do dia 1º de abril de 1964, Seixas Dória lia no Palácio do Governo o “Manifesto aos Sergipanos” que foi transmitido ao povo sergipano pela Rádio Difusora de Sergipe.

"Sergipanos"

O Governo do Estado de Sergipe, fiel aos seus princípios, à sua linha de conduta, à sua vocação popular e ao seu passado, a todos os seus pronunciamentos feitos em doas as tribunas de todas as praças públicas deste País, afirma e reafirma, nesta hora grave e difícil da nacionalidade, seu inquebrantável e intransigente propósito de defender a legalidade e as instituições democráticas, bem como o de lutar pelo respeito e resguardo de todos os mandatos populares, sem exceção de nenhum deles.
Esta é uma hora, sergipanos, de atitudes claras, definidas e definitivas. E é assim pensando que, com a serenidade que a conjuntura exige, mas com a firmeza e o vigor que a minha dignidade impõe, declaro ao povo com a maior lealdade que jamais abdicarei dos princípios que sempre nortearam a minha vida de homem público de passado reto e ilibado. Permanecerei, outrossim, firme e decidido na luta em favor das reformas estruturais, democráticas e cristãs, que incorporem ao organismo social vivo da nacionalidade as populações marginalizadas pela vigência de uma ordem anacrônica e semifeudal.

Estas as palavras tranqüilas que teria a dizer aos sergipanos, no momento em que regresso para reassumir o Governo, recomendando a todos a maior serenidade e equilíbrio, e que evitem tudo que possa trazer maiores prejuízos e sofrimento para as massas populares tão injustiçadas e sofridas.

“Que Deus nos guie neste momento difícil da história da nossa Pátria!”
João de Seixas Dória
Governador de Sergipe


Na edição do Diário Oficial do Estado de Sergipe, Seção, Diário da Assembléia, de 5 de maio de 1964 publica três importantes documentos: A Emenda Substitutiva ao Projeto de Resolução n. 4, que declara vago o cargo de governador do Estado, a própria Resolução n. 4, com o mesmo fim, e o Projeto de Resolução, com o mesmo número, mas que declara o impedimento do governador Seixas Dória.


Projeto de Resolução n. 4

Deputado: Comissão Executiva

Declara Impedimento do Governador do Estado e da outras providências

A Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe:
I. Considerando a atual situação política do País;
II. Considerando, que, em virtude da atuação patriótica das Forças Armadas, o Governador João de Seixas Dória não mais se encontra à frente da chefia do Poder Executivo;
III. Considerando que ao Poder Legislativo, como autêntico representante da soberania popular, incumbe zelar pela paz pública.
Resolve:
Art. 1. - É considerado impedido para exercer o cargo de Governador do Estado de Sergipe o Dr. João de Seixas Dória.
Art. 2. - Nos termos da Constituição do Estado, as funções do Chefe do Poder Executivo passarão a ser exercidas pelo Vice-Governador.
Art. 3. - Esta Resolução entrará em vigor na data da sua promulgação, revogadas as disposições em contrário.
Sala das Sessões da Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe, em Aracaju, 4 de abril de 1964.

Fernando do Prado Leite - Presidente
José Raimundo Ribeiro - 1. Secretário
Elysio Carmelo - 2. Secretário

*****

Emenda Substitutiva ao Projeto de Resolução n. 4

Deputado: Antonio Torres

Declaro vago o cargo de Governador do Estado e dá outras providências.
A Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe:
Considerando que a atual situação política do País;
Considerando que o Governador João de Seixas Dória, como instrumento das forças extremistas e antipatrióticas, vem sucessivamente atentando contra a segurança e tranqüilidade do país e do Estado;
Considerando, que, em virtude da atuação patriótica das Forças Armadas, o Governador João de Seixas Dória não mais se encontra à frente da chefia do Poder Executivo;
Considerando, que o Poder Legislativo, como autêntico representante da soberania-popular, incumbe zelar pela paz pública;
Resolve:
Art. 1. - É declarado vago o cargo de Governador do Estado.
Art. 2. - Nos termos da Constituição do Estado, as funções de Chefe do Poder Executivo passarão a ser exercidas pelo Vice-Governador.
Art. 3. - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua promulgação, revogadas as disposições em contrário.

Sala das Sessões da Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe, em Aracaju, 4 de abril de 1964.

*****

Resolução n. 4

Declara vago o cargo de Governador do Estado e dá outras providências

O Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe:
Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe decretou e a Mesa promulga a seguinte Resolução:

Considerando que a atual situação política do País:
Considerando que o Governador João de Seixas Dória, como instrumento das forças extremistas e antipatrióticas, vem sucessivamente atentando contra a segurança e tranqüilidade do país e do Estado;
Considerando, que, em virtude da atuação patriótica das Forças Armadas, o Governador João de Seixas Dória não mais se encontra à frente da chefia do Poder Executivo;
Considerando, que ao Poder Legislativo, como autêntico representante da soberania popular, incumbe zelar pela paz pública;
Resolve:
Art. 1. - É declarado vago o cargo de Governador do Estado.
Art. 2. - Nos termos da Constituição do Estado, as funções de Chefe do Poder Executivo passarão a ser executadas pelo Vice-Governador.
Art. 3. - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua promulgação, revogadas as disposições em contrário.

Sala das Sessões da Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe, em Aracaju, 4 de abril de 1964.

Fernando do Prado Leite - Presidente
José Raimundo Ribeiro - 1. Secretário
Elysio Carmelo - 2. Secretário

Deposto pelo movimento político-militar, Seixas Dória é levado para o quartel da 6ª Região Militar, sediada em Salvador, era cassado e transferido para Ilha de Fernando Noronha, onde passaria 117 dias ao lado do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes (1916-2005).
Em face dos acontecimentos nacionais e ante o afastamento do Governo, do governador Seixas Dória, na edição de 3 de abril, o Diário Oficial do Estado de Sergipe, publica o pronunciamento do governador em exercício, Celso de Carvalho:

“Sergipanos: os últimos acontecimentos que abalaram o país e cujas conseqüências estamos vivendo, no momento, determinaram-me reassumisse as funções de Governo do estado. Proclamo, mais uma vez, meu firme propósito de manter a ordem e assegurar a paz, restabelecendo a confiança do povo, num clima propício ao trabalho honesto e construtivo. Conclamo todas as classes para a realização desses propósitos que convém ao povo e à Nação. Confiemos nas Forças Armadas do Brasil e Deus nos guie todos para melhores destinos dentro da ordem e da lei.”

Na edição do dia 10 o Diário Oficial do Estado notificava:

“A posse do novo titular do Executivo sergipano, nos termos da Constituição Estadual, procedeu-se na mesma sessão da Assembléia Legislativa, tendo o seu Presidente, deputado Fernando Leite, designado uma comissão de deputados para ir oficialmente comunicar a decisão da Casa ao Governador em exercício e trazê-lo ao recinto da sessão.”

Após ouvir as saudações, o Governador Celso Carvalho proferiu palavras de agradecimento. Disse que era sob profunda emoção que se investia na posse efetiva do Governo do Estado em circunstância tão excepcionais. Acentuou que jamais desejara a plenitude do mandato estadual nas condições em que recebia, e que sua consciência estava tranqüila por não ter contribuído para que os acontecimentos se desenvolvessem no rumo a que chegaram.
O governador recebeu várias mensagens de congratulações, conforme Edição do dia 11 de abril:

“O Senhor Governador Celso de Carvalho continua recebendo inúmeras mensagens telegráficas de felicitações pela sua investidura no cargo de Governador do Estado. Divulgamos a seguir os nomes de diversas pessoas dos mais variadas localidades do Estado e do País, que se têm congratulado com o Chefe do Governo.”

Nos anos seguintes, a repressão, o sectarismo, a situação interna e externa acentuaram a crise. O partidão (PCB) esvaziou-se. A luta armada passou a ser defendida de forma cada vez mais ostensiva. Sob a vaga guerrilheira de “Che” Guevara na Bolívia, a juventude pequeno burguesa radicalizou suas posições. Mas não era só os jovens, pois velhos militantes comunistas, como por exemplo Carlos Marighela, optaram pela via insurrecional.
Apesar da reação armada à ditadura ter começado em 1965, quando militares nacionalista foram dominados facilmente pelas forças leais ao regime, foi somente em 1968 que a esquerda marxista mergulhou na guerrilha e no terrorismo.

(Capítulo do livro, Sergipe nas Páginas do Diário Oficial)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A LÍRICA DA CRÍTICA SOCIAL NA POESIA DE JACINTA PASSOS

GILFRANCISCO:Jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com

Em novembro do ano passado (2004), a poeta baiana Jacinta Passos (1914-1973), completaria 90 anos de idade. E mais uma vez esta data passou despercebida dos estudiosos baianos. Apesar de ter sido uma das pioneiras na luta conta às injustiças sociais, esta militante comunista, que atuou em vários estados da federação brasileira, continua desconhecida entre as novas gerações. Jacinta Passos possui uma obra quantitativamente pequena, mas constituída de força e vigor, que deverá merecer em toda evidência as melhores referências críticas.
Poeta de alma popular, Jacinta Passos lutava entre a tempestade e o sentimento, para salientar a força da imagem e a originalidade poética dos seus textos. Por isso produziu uma obra em plena consciência crítica da condição/realidade humana, uma poesia para a vista, poesia para o ouvido.
Entretanto só nos resta esperar a publicação que ocorrerá ainda neste semestre, da reunião de sua obra, Canção Atual (4 livros) acrescida de novos textos, estudos críticos, iconografia e fortuna crítica, edição organizada por sua filha, a professora e escritora Janaina Amado.
***


A partir do modernismo brasileiro, vemos formar-se em nossa literatura um extraordinário conjunto de obras poéticas. Extraordinário não só por suas virtudes enquanto poesia, mas também - ao que tudo indica - por não encontrar paralelo em nenhum dos períodos anteriores. Este conjunto de obras oferece ainda uma característica singular, o intenso e produtivo diálogo entre os poemas e a política de seus autores.
Embora a produção de um autor seja o único dado capaz de fornecer os elementos necessários à compreensão de uma visão de mundo, muitas vezes temos que perseguir no momento histórico que envolveu a obra, as pistas para a compreensão do fenômeno literário. O conhecimento do contexto social, econômico, político e artístico que a cercou, pode ajudar a compreender melhor sua temática, sua linguagem e até mesmo suas intenções, principalmente porque - sua concepção de que a poesia só tem sentido quando muda alguma coisa, poderemos estabelecer relações entre sua produção e cada um dos momentos que a envolveram. De sua obra tem-se melhor impressão pelas provas que nos dá de lucidez e competência ao lidar com as palavras, por isso é fácil deixar-se atrair pela elegância, pela clareza e pelo sentido rítmico de sua linguagem.
Jacinta Passos tem a poesia como forma de indagação e conhecimento do mundo, como uma luta em busca do sentido das coisas, da própria vida e da literatura, como a necessidade de resgatar a experiência da vida, de não deixar que ela se perca. Acompanhando as trajetórias da arte, durante todo o percurso crítico que empreendeu, no sentido de compreender, aceitar e participar das tendências por que passou a poesia brasileira, a partir da Semana de Arte Moderna em 1922. Jacinta Passos espanta pelo arrebatamento que marca não só sua obra, mas também sua vida povoada de atividades múltiplas, porque as ações humanas implicam numa relação com a verdade. Por isso vê o poema como objeto construído com medida e rigor.
Nascida em 30 de novembro de 1914, na Fazenda Campo Limpo, no município de Cruz das Almas, sendo seus pais Berila Eloi Passos e Manoel Caetano da Rocha Passos, viveu alguns anos na cidade de São Felix, passando em seguida a residir em Salvador, juntamente com a família, por ocasião do ingresso do pai na carreira política, quando este foi eleito primeiramente deputado estadual pela legenda da UDN - União Democrática Nacional e deputado federal constituinte.
Diplomada pela Escola Normal da Bahia em 1932 com distinção, Jacinta Passos passou a lecionar nesse mesmo estabelecimento de ensino as disciplinas de Matemática e Literatura Brasileira no curso secundário. Jacinta Passos é uma das maiores poetas baianas, uma figura marcante no cenário político brasileiro, uma poeta de características construtivistas, que pesquisa e trabalha a forma, mas a linguagem que utiliza quase sempre e coloquial, simples da mesma maneira como fala. A jovem baiana vive sua infância e juventude no interior do estado, em plena transformação, período cuja política se apóia na hegemonia dos grandes proprietários de terras. O panorama social que começa a se transformar em fins do século XIX, com a Abolição da Escravatura e o início da imigração, tem seu processo acelerado com a Primeira Guerra Mundial.
O domínio que a poeta da “Canção da Partida” foi adquirindo sobre as palavras, com uma sólida base humanista, vem desde “Momentos de Poesia” coletânea de versos, que mesmo inédito e sem título definitivo na época, foi submetido à apreciação do crítico literário Carlos Chiacchio (1884-1946), colaborador efetivo que mantinha no jornal A Tarde uma coluna intitulada “Homens & Obras” (1928-1946), onde publicou 957 rodapés, principalmente de crítica literária. O referido comentário, publicado em 6 de outubro de 1937 diz o seguinte: “Poesia, é o título arbitrário que adotei para revelar o nome de Jassy Passos. Os versos, ademais, não me foram mandados para nenhuma revelação. Eu é que reputaria um crime se não dissesse deles a surpresa agradabilíssima que me causariam. Por que? Há entre nós uma inteligência harmoniosa de artista do verso, como Jassy Passos, e não traze-la à admiração justa do público, que ainda tenha em apreço espiritual as espontaneidades do talento. Não é possível o silêncio. Perdoem me os delicados melindres da jovem poetisa. Os versos é que não carecem de pedir perdão. Defendem-se com toda a força da sua indiscutível pureza. Vamos ler sem mais comentários, o soneto - Maria”:
Ergue-se a cruz no cimo do Calvário
Após cumprir sua missão, Jesus,
que por nós nasceu pobre e solitário
por nós agora vai morrer na cruz.

Já se fez o divino donatário
de tudo o que era seu. Benção da luz
que desceu sobre o mundo tumultuário,
é doutrina de amor que ao céu conduz.
Prisão, tortura, sede fundas dores
desprezo, ingratidões, açoites horrores,
tudo sofreu por nós, pobres mortais.
E ainda nos dá, no instante da agonia,
santificado, o vulto de Maria
que é o bem maior que todos os demais.

“Dir-se-á que, nem o assunto, nem a forma, são essas novas. Quem já não escreveu sobre Maria? Antologias se contam. Quem já não fez sonetos? Só os que ainda não nasceram para poesias. O que há porém em Jassy Passos, é a concepção nova do sentido estético da fé, - que há uma ética da fé - naquela chave, verdadeiramente de ouro, se já não fosse tão mal usada à expressão”. Repitamo-la:


E ainda nos dá no instante da agonia,
santificado, o vulto de Maria
que é o bem maior que todos os demais.

“Nunca ninguém disse com mais simplicidade sobre um dos maiores temas do catolicismo, que é esse “bem maior que todos os demais”, legado por Jesus.
Não se pense, todavia que a arte de Jassy Passos se valha do sentimento místico, para vingar louvores, ou captar simpatias. O seu espírito é sincero. Em outras mostras dá mérito, acusa uma sensibilidade notável para os aspectos da natureza, como no poema - Manhã de Sol -, cujo fecho demonstra, apesar da homofonia, a emotividade lírica de Jassy Passos”:

E todo esse esplendor se comunica
á alma da gente que vibrando fica,
e, com alta emoção, esplêndida e feliz bendiz
numa alegria incontida
a glória de viver e a beleza da vida.

“Já, agora, não há como conhecer, integra, um dos poemas inéditos de Jassy a nova poesia baiana”:

Meu Sonho

O meu sonho
mais risonho
é suave e pequenino
resumindo entretanto o meu destino.
É de cor azul sonora
como o mar que longe chora.
É cor de infinito e de ânsia,
cor de céu, cor do mar, cor de distância.
Tem a leve suavidade
da saudade.
E a cantante doçura
de um regato que murmura.
Macio e encantador
É caricia de pluma e perfume de flor.
O meu sonho
mais risonho,
é para mim, cada momento:
o motivo maior de doce encantamento.
“Sem nenhuma pretensão a gênio, mas com toda a espontaneidade de alma, Jassy Passos é uma das mais legítimas expressões do nosso lirismo feminino.”1

Seu livro de estréia “Nossos Poemas”. Dividido em duas partes, Momentos de Poesia de Jacinta Passos e a segunda, Mundo em Agonia de Manuel Caetano Filho - seu irmão, quatro anos mais moço. Salvador, Gráfica Popular, 1942, onde a religiosidade marcada pelos anos de juventude, transparece ostensivamente nos 38 poemas. Muitos destes, publicados em vários periódicos de grande circulação nacional, como a revista cultural A Ordem, do Centro D. Vital, do Rio de Janeiro, fundada pelo sergipano Jackson de Figueiredo (1891-1928), onde publicou três poemas em 1940: A missão do poeta, Vol. XXIII; Sacerdócio e Alegria, Vol.XXIV.
Embora “Momentos de Poesia” seja sempre citado como inicio da produção poética de Jacinta Passos, obra que reúne poemas marcados pelos motivos que Salvador e algumas cidades do interior baiano lhe haviam oferecido até aquele momento, são poema latentes, ainda vagas, que a poesia luta para transformar em palavras concretas, buscando um caminho poético próprio, para quem o poema depende essencialmente da lógica de sua construção, procurando desmistificar os mecanismos de funcionamentos da linguagem. Por isso mereceu quando do seu lançamento, um pequeno comentário publicado na revista Seiva nº14, out. 1942: “Não importa, assim que o sr. Manuel Caetano Filho seja mais cerebral do que sentimental - o que talvez seja uma qualidade da sua poesia; como não importa igualmente que a sra. Jacinta Passos ainda não encontrasse claramente o seu caminho. Mas não tardará encontra-lo. As qualidades de sua poesia são excelentes, nada ficando a dever em expressão poética propriamente dita, a qualquer dos poetas que fizeram os grandes poemas a que nos referimos”.
Sua segunda coletânea “Canção da Partida”. São Paulo, Editora Gaveta, 1945, o mais importante dos seus livros, apresenta uma edição limitadíssima de 200 exemplares em papel bouffoud de 1ª qualidade, sendo 45 numerados e assinados pela autora e 10 exemplares, contendo cada exemplar uma ponta-rica original do artista plástico Lasar Segall, marcados de A a J, tendo 121 páginas, onde a poesia de Jacinta Passos assumiu aspecto de maior espessura e ganhou condições de fluir em outros poetas, por ter sido um exato e comovido exercício de busca pelo ser. Porque a poesia se faz com as palavras, com que homens e mulheres amam, se entendem, se complementam e indicam novos rumos, insere-se na ação divina no que ela tem de mais criador.
É a partir desse livro, que mereceu em 1990 uma 2ª edição, em comemoração aos 45 anos de sua publicação e 76 de nascimento da autora, através da Empresa Gráfica da Bahia/Fundação das Artes, com tiragem de dois mil exemplares, num belíssimo trabalho cuidadosamente apresentado pelo crítico paulista José Paulo Paes (1926-1998), onde as preocupações com os grandes temas do homem do cotidiano, as recordações de infância, a dor, tristeza, a solidão. Jacinta Passos vai criando uma tonalidade; suas experiências, suas lembranças, todos os seres formam uma continuidade dentro dela e dentro da história, um universo em que nos faz penetrar, povoado de símbolos expressivos que aparecendo sob diferentes formas, constroem imagens e metáforas reveladoras de um estado poético transcendente.
Em 1945, recém casada com o escritor e tradutor James Amado, se candidata a deputada estadual pelo PCB da Bahia, sem conseguir eleger-se, é ainda o ano em que termina a guerra, com a vitória dos aliados, delineando a partir de então os caminhos da redemocratização no país, com o aparecimento de vários partidos políticos, inclusive o PCB, culminando com a deportação do presidente Getúlio Vargas. No ano seguinte, o Brasil ganha sua quinta Constituição e o PCB que fora legalizado um ano antes, volta à clandestinidade em 1947 e, em 1948, o país rompe novamente suas relações com a extinta União Soviética.
A partir daí, o país vivendo as influências da guerra fria, alinha-se ao Bloco Ocidental que realiza uma política de contestação do avanço comunista. Transferindo-se para o Rio de Janeiro em 1951, onde intensifica sua atividade política, passa a colaborar na “imprensa de esquerda”: Voz Operária, Hoje, Imprensa Popular, dentre outros e milita em organizações emprenhadas na defesa dos direitos humanos e pela legalização do seu partido.
Quando Jacinta Passos publica seu terceiro livro “Poemas Políticos”, Rio de Janeiro, Casa do Estudante, abril de 1951 - dividido em três partes: Poemas Políticos; Canções Líricas e Canção da Partida, um pequeno livrinho de 87 páginas que totalizava 19 poemas. Sua presença também se estendia a política, na natural complementação de uma luta por uma sociedade justa e fraterna que abraçava todos os campos.
A própria instabilidade social do país favorecia essas oscilações, daí uma série de marchas e contramarchas estéticas. Desse exercício de adolescência, passou diretamente para a maturidade, cujos resultados seriam registrados nesse livro, obra composta de poemas reveladores das suas preocupações à época, que lhe garantiria um posto de destaque na poesia brasileira.
São poemas em que ela exprime a totalidade de suas experiências no plano da vida e da literatura, por versos carregados de paixão corporal, buscando na poesia uma forma de expressar suas mudanças e seu aprofundamento de visão da realidade: a solidariedade para com os menos favorecidos é um dos temas mais explorados por poemas longos, líricos em sua maioria.
Audaz, inovadora da linguagem poética, que nutria o mais fundo respeito pela tradição. Jacinta Passos abriu com sua solitária voz, as portas do cenário poético baiano em que a poeta, a cronista e a militante, confluem para “agudizar-lhe” ao extremo a compulsão de mergulhar cada vez mais fundo em busca do novo, do moderno.
Ao desabrochar sua potencialidade literária muito jovem, Jacinta Passos está marcada por uma profunda unidade, com o seu perfil inquieto e revolucionário. Poeta da poesia, ela deixou uma obra apesar de pequena, em termo de produção, mas de grande importância para nossas letras, que certamente sobreviverá à sua própria morte, verdadeiro tesouro que se manteve escondido por todos esses anos.
Jacinta Veloso Passos atinge uma tensão emotiva ainda rara em nossas letras, que através de combinações, o sagrado fogo da eterna poesia de extraordinária riqueza e lirismo, no mais espontâneo de sua criação poética, não altera nem perturba o seu prodigioso domínio sobre si, porque sabe de onde vem e para onde vai, com a mesma consistência e igual intensidade, desde o primeiro poema de “Momentos de Poesia” ao último verso de “A Coluna”. Assim era a poeta Jacinta Passos, em permanente estado de poesia.
Ao conquistar lentamente um estilo pós-moderno, pós-guerra, onde já revelara aí o gosto pelo jogo de sons e ritmos, num “trabalho em constante progresso”, exerce Jacinta desde seu livro de estréia uma função de unificadora de relações e de semelhanças. Numa convivência perfeita entre a militância política nas fileiras do Partido Comunista desde 1945, com a habilidade de versejar.
Jacinta poeta de muita autenticidade e talento na feição do poema participante, do poema de luta e de reivindicações sociais fez sucesso, destacando-se como uma das vozes mais claras e gritantes da nossa poética militante, apesar de ser hoje um nome praticamente desconhecido na moderna poesia nacional. Com a publicação do livro “A Coluna”, Rio de Janeiro, Coelho Branco Editor, 1957, longo poema em quinze cantos, servindo-se como roteiro o motivo principal, a legenda heróica da Coluna Preste, onde Jacinta Passos atesta o poder da “brava gente” brasileira, cantada e encantada num dos seus mais positivos movimentos de arrancada social de redescoberta do Brasil e dos caminhos de sua miséria.
“A Coluna”, seu último trabalho publicado, além de um grito de amor é peça histórica que se incorpora ao nosso cancioneiro, colocando-se ao lado de outros poemas no gênero, cuja tradição vem desde “O Navio Negreiro” de Castro Alves ou dos “Cânticos Guerreiros” de Gonçalves Dias. Jacinta Passos muitas vezes atinge um estado lírico total, principalmente quando narra o desfile desses heróis. A poeta cruz-almense soube arrancar o seu poema, revestindo-o de diademas em “quinze cantos” que colocou na frente do povo em marcha, guiado pelo “comandante sem-par”.
Portadora de um caráter descritivo, de originalidade de imagem e simplicidade de forma, ela canta desde o legado mítico, histórico e político de sua Pátria, até não se deixar abater. Ora essa postura de militante acompanhará até o fim de sua longa e penosa trajetória, pois a sensibilidade aguçada, a personagem funciona no poema como o desdobramento da personalidade poética da autora.
Essa mesma postura sempre mais requintada, permanece ao longo de sua carreira literária, onde predomina as preocupações sociais. Na realidade, a poesia realiza um processo de auto-escavação - é a luta entre a essência e aparência, entre o eu que se mostra e o que se esconde. Com o título de “Canção da Partida”, ele por si diz tudo - é que a leva a cantar a vida e o mundo que a cerca, ao mesmo tempo se indaga sobre as relações humanas, sobre sua relação com o outro. Às vezes a autora tenta recuperar o tempo passado, vencer a distância que a separa das terras interioranas, onde ficou parte da infância.
À medida que percebe que o passado se torna presente, através da herança cultural legada pela terra, uma inquietação manifestada na sua autoconsciência responsável pelo mergulho nesse passado, caminha para o entendimento com os que a cercam, forma de a eles se associar, leva a poeta baiana ao questionamento da poesia. Desde “Momentos de Poesia” explicita ou implicitamente o amor e a religiosidade,ocupam significativo espaço em sua abra, como realidades que se afirmam e se negam ao mesmo tempo.
Talvez porque o que angustia a poesia seja a consciência do momento que passa, é a descoberta do tempo - não propriamente do tempo passado, mas do tempo puro, tempo original absoluto, idêntico à eternidade, que só a arte pode proporcionar. A primeira crise da sua doença mental manifestou-se em fins de 1957 e daí por diante passou por sucessivos períodos de internamento hospitalar.2 Entre 1958 e 1961 já separada do marido, James Amado, Jacinta Passos passa a residir na cidade de Petrolina em Pernambuco, às margens do Rio São Francisco, a qual faz limites com o município de juazeiro, no estado da Bahia.
Entre 1962 e 1963, foram lançados no Rio de Janeiro pela Editora Civilização Brasileira, as antologias dos cadernos do povo brasileiro - “Violão de Rua”, em colaboração com o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, que saiu com três números dirigidos por Álvaro Vieira Pinto e Ênio da Silveira, sob coordenação do poeta Moacyr Felix. “Violão de Rua” era uma tentativa de manter uma posição de vanguarda sem comprometimento com o formalismo estético, utilizando todas as formas poéticas, inclusive as folclóricas e populares. O sucesso comercial da coleção foi tal que foram vendidos cerca de quarenta mil exemplares. Dentre os poetas, encontravam três baianos: José Carlos Capinan, Francisco Pinto e Jacinta Passos com dois poemas: A morte do coronel e Elegia das quatro mortes (fragmento), ambos publicados na edição extra nº III, de 1963.3
Quando do golpe militar de 1964, marco de um longo período fustigado pela repressão, pela censura e pelas perseguições políticas, sua família, por precaução, resolve queimar os originais de seus livros inéditos: poemas e peças de teatro adulto e infantil, com o que se perdeu definitivamente toda a sua produção posterior “A Coluna”.
Desde de julho de 1962, Jacinta Passos encontra-se em Aracaju e passa a residir em Barra dos Coqueiros num povoado de pescadores, localizada as margens do rio Sergipe, em frente a capital do estado, onde desenvolve suas atividades políticas junto à comunidade local. Presa no município Barra dos Coqueiros em maio de 1965 pela tropa do exército do 28 BC, é submetida a longos interrogatórios, permanecendo detida por alguns dias. Diagnosticada como doente mental Jacinta Passos Amado é recolhida ao sanatório público Adauto Botelho e em seguida transferida em 3l do mesmo mês para a “Casa de Saúde Santa Maria”, onde fica internada até morrer, em 28 de fevereiro de 1973, aos 58 anos de idade.
Jacinta Passos dirigiu por algum tempo o Departamento de Publicidade da LBA, além de colaborar com artigos polêmicos e explosivos em jornais e revistas de Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, tendo exercido atividade jornalística diária no jornal Estado da Bahia e no Imparcial, durante a segunda Guerra.
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Notas:
1. Carlos Chiacchio. Salvador, A Tarde "Homens & Obras", 6. out. 1937.
2. Talvez 1956 tenha sido o últimoano em que Jacinta Passos viveu plenamente com saúde e plena atividade intelectual. Esse registro pode ser comprovado em dedicatória manuscrita no livro Poemas Políticos, a sua filha Janaína. Encerra afirmando "Bahia. Ano-Bom de 56".
3. Ambos os poemas A Morte do Coronel e Elegia das quatro mortes, fazem parte do livro Poemas Políticos. Rio de Janeiro, Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1951.

Poemas Esparsos - Jacinta Passos

Maria

Ergue se a cruz no cimo do Calvário.
Após cumpri, sua missão Jesus
que por nós pobre e solitário
por nós agora vai morrer na cruz
Já se fez o divino donatário
de tudo o que era seu. Benção de luz,
que desceu sobre o mundo tumultuário
é doutrina de amor que ao céu conduz.
Prisão, torturas, sede, fundas dores.
desprezo, humilhações, açoite, horrores
tudo sofreu por nós, pobres mortais.
E ainda nos dá, no instante da agonia,
santificado o vulto de Maria
que é o bem maior que todos os demais

(Rio de Janeiro. O Malho -Ano XXXV nº 180- 12. nov. 1936. Salvador. A Tarde),

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Incerteza

Em meu olhar se espelha
a sombra interior de incerteza angustiante.
E em minha alma floresce, como rosa vermelha
dum vermelho gritante,
como o clangor clarim,
esta angústia que vive a vibrar dentro em mim.
É a minha vida um longo e ansioso esperar,
num amor que há de vir.
Amor - prazer que é dor e sofrer que é gozar -
Amor que tudo dá sem nada nos pedir,
e que, às vezes, num rápido segundo,
resume a glória toda e toda a ânsia do mundo.
Mas depois deste amor, o que virá? O tédio
insípido e tristonho,
desenganos sem cura e dores sem remédio.
Com a posse dum bem, o desfolhar dum sonho...
Vale mais, muito mais,
desejar sempre um bem, sem possui-lo jamais.
Oh! não. O coração
não se cansa de amar se sabe querer bem.
- Ter para o erro o perdão,
renunciar a si mesmo e viver para alguém -
E se um motivo qualquer,
imperioso e fatal, o sonho desfizer?
Então eu saberei bendizer, comovida,
o amor que já passou,
deixando uma doçura amarga em minha vida.
Quando o sonho murchar,
a esperança está finda,
mas dentro d'alma, fica uma saudade linda.

(Rio de Janeiro. O Malho - Ano XXXV - nº 185, 17.dez. 1936).
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Meu sonho

O meu sonho
mais risonho
é suave e pequenino
resumindo entretanto o meu destino.
É de cor azul escura
como o mar que longe chora
É cor de infinito e de ânsia
cor do céu, cor do mar, cor de distância.
Tem a leve suavidade
da saudade,
e a cantante doçura
de um regato que murmura.
Macio e encantador
é carícia de pluma e perfume de flor.
O meu sonho
mais risonho,
é para mim cada momento
o motivo maior de doce encantamento.

(Salvador. A Tarde, 6. out. 1937).

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Sacerdócio

para D. Beda O. S. B. -

Fora do espaço e do tempo,
vejo todos os seres integrados no Ser infinito.
Vejo a realidade eterna da vida divina
na Trindade Santíssima
- o Pai exprimindo, sem início e sem fim,
a plenitude absoluta do Ser
no Verbo incriado,
imagem perfeita da suma perfeição,
e o Filho se entregando inteiramente ao Pai,
no Espírito do amor.
Vejo a comunicação da vida infinita.
- O Verbo feito carne.
O homem concentrando toda a criação
e o Filho do Homem continuando o sacerdócio eterno.
Vejo os sacerdotes marcados com o sinal sagrado,
consagrando a oferta de todos os homens,
oferecendo ao Pai o dom absoluto do Filho Encarnado,
integrando todos os seres na vida infinita
de Deus.

(Rio de Janeiro. A Ordem, Ano XX, Vol XXIV, jul/dez. 1940).

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Alegria

Perscrutei ansiosa a tua face.
E na tua face marcada pelo sofrimento,
batida por todos os ventos do mundo
trabalhada por todas as misérias da terra.
na tua face,
onde se cruzam os sulcos de fundas dores humanas,
onde ficaram rastros de passos perdidos por obscuros caminhos,
descobri, ó meu irmão desconhecido e anônimo,
um traço de semelhança com a tua face verdadeira,
a Face Perfeita de todos os homens.

(Rio de Janeiro. A Ordem - Ano XX- Vol. XXIV, jul/dez. 1940).

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A missão do poeta

No instante inicial da criação,
quando o mundo acabava de sair
das mãos de Deus,
e quando as coisas todas palpitavam,
quentes ainda do seu sopro criador,
escutou-se o primeiro cântico, na terra,
glorificando o Senhor.
Canta
o poeta porque seu destino é cantar.
Cantar o mesmo canto que irrompeu
dos lábios do primeiro homem criado,
ante a maravilhosa visão da beleza.
da esplêndida harmonia universal.
Cantar ao Senhor,
bendizendo a divina perfeição,
bendizendo o amor infinito
que transbordou, criando as criaturas.
Canta o poeta,
a glória e o sofrimento do universo.
Canta por todas as criaturas,
que não sabem cantar.
Aprende
a realidade íntima das coisas,
o mistério que liga os seres todos,
numa unidade essencial,
e canta
as belezas dispersas pelo mundo,
fragmentos da beleza total.
Sente
a harmonia quebrada do universo,
a desordem estabelecida
pelo egoísmo do homem,
e canta
a angústia da alma humana que procura
o paraíso perdido.
Sofre
a dureza de sua própria resistência
e canta
o fundo e permanente sofrimento
para atingir o estado interior,
quando, de dentro d'alma irrompe, límpido
puro, o canto único,
que eleva as coisas todas para o alto
glorificando o Senhor.
Canta
o poeta porque seu destino é cantar.

Bahia, 26 de agosto de 1938.

(Rio de Janeiro. A Ordem, jan/jun, 1940).

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Canção para Maria

Por que estás triste, Maria
como noite sem espera,
por que estás triste, Maria
que eu vi no porto de Santos
e nos campos da Bahia?
Tua fala me responde:
sete e sete são quatorze,
caranguejo peixe é,
como custa ai! como custa
de remar contra a maré.
Vamos Maria vamos,
o mundo é céu, terra e mar.
Não tenho pena e consolo
nem fuga para te dar.
Tua sorte será feita
com o poder de tua mão,
se vence fera e doença,
também fome e solidão,
se vence até a loucura
com o poder de tua mão.
Amanhã vamos à lua
diz a ciência: por que não?
se vence governo e polícia
ó Maria
com o poder de tua mão.
Vamos Maria vamos,
o mundo é céu, terra e mar
Eu já vejo amanhecendo
tão belo, no seu olhar.
Tão real como teres pés
é a fala do velho Stalin
é o novo mundo chinês.
Tão certo como um provérbio
que a boca do povo fez.
A paz não chega de graça
como chuva cai do céu.
Quanto suor, pensamento,
quanta bravura escondida
Maria, neste momento.
Tua sorte é de teu povo
ninguém pode separar.
Sou povo não sou cativo,
Quitéria pegou nas armas,
Zumbi foi um negro altivo,
pelas mãos deste pracinha
foi Hitler queimado vivo,
ó senhor americano
sou povo não sou cativo:
teu poder? era uma vez
histórias da carochinha
e jugo do português.
Verdade tão verdadeira
nem precisa se enfeitar.
Vamos Maria vamos,
o mundo é céu, terra e mar.

São Paulo, 1952

(São Paulo. Fundamentos, Ano V, nº 31, 1953).
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Jornal da Cidade. Aracaju, 31 de janeiro e 1º. de fevereiro, 2006. Publicado no livro Jacinta Passos: a Busca da Poesia, GILFRANCISCO. Aracaju, Coleção BASE n.2, Edições GFS, 2007. Republicado em Jacinta Passos, Coração Militante. Org. Janaína Amado. Salvador, Edufba/Corrupio, 2010.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

UM OLHAR POÉTICO SOBRE A LINGUAGEM DE BAKHTIN

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com


O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) é considerado um dos grandes pensadores do século XX, apesar de ter tido uma carreira apagada na Rússia, seu nome não é sequer mencionado nos livros Cultura e Revolução Cultural, de Lenin e Literatura e Revolução, de Leon Trotsky, como a maioria dos intelectuais de sua geração, Bakhtin apoiou a Revolução de 1917. Muito embora não sendo um produto da Revolução, ele se formou na agitação dos anos imediatamente anteriores a essa grande revolta. Longe de ser considerado um marxista-leninista, Bakhtin fez de tudo para evitar o conflito com o Estado soviético, sem perder sua independência intelectual, mas era impossível suas idéias não irem em rota de colisão com o poder estatal. O interesse por sua obra no Ocidente não deriva de nenhuma dissidência poolítica ou oposição aberta à autoridade soviética, mas o produto da atração de suas idéias. Bakhtin coloca no centro de suas preocupações a intricada relação que o homem mantém com o mundo através da linguagem e sustenta o firme propósito de compreender a literatura como um fenômeno estético totalmente articulado ao contexto cultural mais amplo. Bakhtin levou uma vida discreta, só conseguiu que suas obras realmente circulassem em seu país, ainda que de maneira lenta, depois de 1963. Sua obra traduzida para diversas línguas, alcançando grande repercussão no Ocidente, abrindo novas perspectivas aos estudos literários. Tudo que sabemos da sua vida pessoal, foi "recentemente" revelada pelo casal de pesquisadores, Katerina Clark e Michael Holquist, autores da biografia, Mikhail Bakhtin, 1984. O livro é o resultado das sucessivas pesquisas realizadas nos arquivos russos e em entrevistas, na União Soviética, com pessoas que conheceram Bakhtin pessoalmente ou possuíam informações sobre ele.

Mikhail Mikhailovitch Bakhtin nasceu no dia 16 de novembro de 1895 em Orel, pequena cidade ao sul de Moscou. De origem aristocrática empobrecida, seu avô tinha fundado um banco de que seu pai dirigiu várias filiais. De pais cultos e liberais, deram aos filhos (ele tinha três irmãs e um irmão Nikolai, o mais velho) uma educação exigente e refinada. Aos nove anos, mudou-se a família para Vilna, capital da Lituânia (o maior e o mais populoso dos países bálticos) cidade em que conviviam muitas línguas (polonês, lituano, iídiche) diferentes grupos étnicos, diversas classes sociais. Aos quinze anos Bakhtin vai para Odessa, cidade também marcada pelo plurilingüismo, onde há uma forte influência judaica, e tem início seus estudos universitários. Após um ano, transfere-se para a Universidade de São Petersburgo, onde se matricula no Departamento de Letras Clássicas e se forma em História e Filologia. Foi na universidade que conheceu F. F. Zelinski, um classicista russo-polonês de reputação internacional, a cujas idéias, em certo sentido, pode-se diz\er que Bakhtin recorreu durante toda a sua vida.

Formado em 1918, foi professor em Nevel, depois muda-se para Vitsbsk (1920), casa-se com Elena Aleksandrovna Okolovitch, sua fiel colaboradora durante meio século, trabalha como professor e participa de um pequeno circulo de intelectuais e de artistas entre os quais se encontram Marc Chagall e o musicólogo Sollertinsky, um jovem professor do Conservatório de Música local Valentin Nikolaévitch Volochínov, Pável Nikolaévitch Medviédiev, empregado de uma editora, o filósofo Matvei Issaévitch Kagan. O grupo lia Kant, Hegel, Santo Agostinho, Vladimir Soloviov e os livros de V. Ivánov e ficou conhecido sob o nome de "Círculo de Bakhtin", foi responsável pelas idéias inovadoras, numa época de muita criatividade, particularmente nos domínios da arte e das ciências humanas. Segundo os estudiosos do pensamento bakhtiniano, Katerina e Michael "o círculo de Bakhtin não era, em nenhum sentido, uma organização fixa. Era apenas um grupo de amigos que adoravam encontrar-se e dabater idéias e que tinham interesses filosóficos comuns (...) Normalmente, um dos participantes preparava uma breve sinopse ou resenha de uma obra filosófica e a lia para o círculo como base para discussão. O conjunto de tópicos tratados era amplo, incluindo Proust, Bergson, Freud e, acima de tudo questões de teologia. Às vezes um dos membros proferia uma série de conferências para os outros. A mais famosa delas foi um curso de oito conferências sobre a Crítia do Judto, de Kante, proferido por Bakhtin no início de 1923". Nesta época publica o ensaio Arte e responsabilidade, em que explora as relações entre as formas artisticas e a vida social.
Em 1923, atacado de osteomielite crônica, que o levará, em 1938, a amputar uma perna (inflamação dos ossos e da medula óssea), passando a receber uma pequena pensão por invalidez,única renda regular por muitos anos. Impossibilitado de trabalhar regularmente, Bakhtin retornou a Petrogrado, sendo acompanhado pelos discípulos Volochínov e Medviédiev pelo desejo de ajudá-lo financeiramente e ao mesmo tempo divulgar suas idéias, e oferecem seus nomes a fim de tornar possível a publicação de suas primeiras obras. Volochínov e Medviédiev desapareceram nos anos trinta, durante os expurgos stalinistas. Em 1928 frequentou as reuniões do grupo religioso "A ressurreição" liderado por Guéorgui P. Fiedótov, que achava que "o marxismo revolucionário [era] uma seita apocalíptica judaico-cristã". Em 1929, Mikhail Bakhtin é preso e condenado a cinco anos de trabalhos forçados em um campo de concentração nas ilhas Solóvki, no Ártico. Graças a influência de amigos e intelectuais como Máximo Górki, Alexei Tolstói, e a generosidade de Anatóli Lunatchárski, Comissariado da Instrução Pública, que publica uma resenha favorável do livro sobre Dostoievski. Por causa da saúde precária sua internação é transformada em exílio na cidade de Kustanai, na fronteira do Cazaquistão com a Sibéria. Ai exerceu diversos trabalhos: guarda-livros, professor para empregados de fazendas coletivas, redator de verbetes de enciclopédia.
Em 1936 foi nomeado para o Instituto Pedagógico de Saransk e um ano depois instalou-se em Kimri, próximo a Moscou, onde viveu em completo obscurantismo até 1945, ensinando russo e alemão. Em 1940, apresenta no Instituto Gorki de Literatura Mundial de Moscou sua tese de doutoramento, intitulada Rabelais e a cultura popular. Devido à Guerra não consegue defendê-la, o que só acontecerá em 1946. Depois de intermináveis discussões da banca examinadora, não foi suficiente para lhe dar o título de doutor em 1952, a qual somente foi publicada em Moscou, no ano de 1965, com o título de A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. De 1945 a 1961, data da sua aposentadoria, ensina mais uma vez em Saransk, terminando sua carreira na universidade local. A partir de 1963, Bakhitin começa a gozar de uma certa notoriedade, sobretudo após a reedição de sua obra sobre Dostoeievski (1963) e a tese sobre Rabelais. Em 1969 busca tratamente médico na região de Moscou, onde publicou alguns artigos nas revistas "Questões de Literatura" e "Contexto". Morreu na capital Moscou em 1975, após uma longa enfermidade.


Marginalizado pelos círculos acadêmicos de prestígios, Bakhtin é autor de uma obra complexa e difícil de entendimento, não há nela uma teoria facilmente aplicável, nem uma metodologia acabada. No Brasil foram publicados importantes estudos sobre Bakhtin: Mikhail Bakhtin, Katerina Clark e Michael Holquist. São Paulo, Editora Perspectiva, 1998; Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do Circulo de Bakhtin, Carlos Alberto Faraco. Curitiba, Criar Edições, 2003; Entre a poesia: Bakhtin e os formalistas russos, Cristovão Tezza. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2003; Introdução ao pensamento de Bakhtin, José Luiz Fiorin. São Paulo, Editora Ática, 2003; Bakhtin – Dialogismo e Polifonia, Beth Brait. Editora Contexto


Bakhtin no Brasil


Durante muitos anos o nome de Mikhail Bakhtin esteve silenciado na Rússia, exceto por especialistas em estudos eslavos e mesmo assim só por aqueles com especial interesse pela obra de Dostoievski. Hoje, entretanto, as obras de Bakhtin exercem considerável influência entre críticos literários e historiadores culturais,não só em sua terra natal, mas também na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil foram publicados os seguintes livros: Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Editora Hucitec, 1979; Estética da Criação Verbal. São Paulo, Editora Martins Fontes, 1979; A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de François Rabelais). São Paulo, Editora Hucitec/Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1987; Questões de Literatura e de Estética(a teoria do romance). São Paulo, Editora Hucitec/UNESP, 1988; Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1981; O Freudismo: um esboço crítico. São Paulo, Editora Perspectiva, 2001.
Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicado na Rússia em Leningrado, 1929-1930, em duas edições sucessivas e assinado por Valentin N. Voloshinov. Nenhum estudioso, nos tempos modernos, fez mais para revitalizar o estudo do que passou a ser chamado "as ciências humanas" - e particularmente a ciência da linguagem - do que Roman Jakobson (1895-1982). Ele é o autor do prefácio da edição francesa de 1977, e aponta Mikhail Bakhtin como seu verdadeiro autor. Não são claras as razões efetivas que teriam levado Bakhtin a escolher o nome de um dos seus amigos e discípulos para subscrever a autoria do livro. O fato é que o leitor encontrará em Marxismo e Filosofia da Linguagem, vários pontos comuns com Problemas da Poética de Dostoievski e mesmo com a sua obra sobre Rabelais (A farsa Medieval, Gilfrancisco. Tribuna da Bahia, 2. jan. 1989). Dividido em três partes, na primeiro e na segunda são tratadas questões de natureza técnica e metodológica, enquanto a terceiro é dedicada à análise de diferentes formas de discursos. Nessa obra, depois da crítica às duas mais importantes correntes da lingüística de sua época, o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista, mostra-se a historicidade das formas lingüísticas na situação real de comunicação. Isso é ilustrado com magnífico estudo das formas de citação do discurso alheio: o discurso direto, o indireto e o indireto livre. Portanto, nos anos trinta, Bakhtin já tratava o problema das relações entre linguagem e ideologia de forma a superar totalmente as limitações ortodoxas, opondo-se a Nicolai Iakovlevitch Marr (1864-1934), especialista em línguas caucasianas e autor da "teoria jafética", que postula a monogênese da linguagem. Esta doutrina, que considera a linguagem uma superestrutura e um fenômeno de classe, preponderou na lingüística soviética até que Stálin (1879-1953) a considerou antimarxista, em 1950.
Questões de Literatura e de Estética, mostra a singularidade do romance, que, para ele, é a força mais significativa na história da consciência. O filósofo russo analisa a natureza do romance e sua evolução, do ponto de vista das atitudes em relação à linguagem e em relação ao espaço e ao tempo. Tanto nessa obra como em Problemas da Poética de Dostoievski, Bakhtin discorda das proposições do filósofo marxista húgaro Giorgy Luckács (1885-1971), autor de Teoria do Romance, que via o romance como umgênero que aparece associado à ascensão da burguesia, sendo, portanto, a epopéia de um mundo dessacralizado, o mundo burguês. A visão bakhtiniana do romance é radicalmente outra.
A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, apresenta o conceito de carnavalização e analiza-se a obra de François Rabelais (1494-1553), a partir de seus laços profundos com a cultura popular e o carnaval. Considerado uma das maiores expressões do Renascimento, sua obra resumindo as aspirações da primeira metade do séc. XVI, conciliou a erudição com as tradições populares. Rabelais desenvolve em suas narrativas heroico-cômicas lições de um novo humanismo. Atrás do tom grotesco e da farsa, ele convida o leitor a pensar numa renovação do ideal filosófico à luz do pensamento antigo e faz uma profissão de fé na ciência e na natureza humana. Para Mikhail Bakhtin, Rabelais é o mais popular e o mais democrático dos grandes autores do Renascimento. Seguindo no rastro dessa tradição é que se desenvolve sua análise, debrucando-se sobre a multiplicidade das manifestações da cultura popular - ritos, espetáculos, festas, obras cômicas orais ou escritas.
Problemas da Poética de Dostoievski, livro em que analisa-se o romance polifônico (efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas, independentes mas harmonicamente relacionadas) de Dostoievski. Para isso, começa-se a delinear o conceito de carnavalização e estudam-se, entre outros temas, a palavra bivocal e a distinção entre prosa e poesia. Para Bakhtin, o autor de Crime e Castigo foi o criador de um novo gênero literário, o romance.