segunda-feira, 6 de julho de 2009

Machado de Assis em duas dimensões


GILFRANCISCO: Jornalista, professor da Faculdade São Luís e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

Remanescente da última geração romântica, como poeta antecede os bastidores da Nova Idéia e com o desenvolvimento de sua atividade literária, torna-se contemporâneo dos parnasianos, e como prosador precede o Naturalismo, terreno que edificou a sua glória, tornando-se mestre e modelo, a seguir e imitar. Possuidor de uma atividade contínua, sempre atenta à evolução da técnica literária, Machado de Assis que está completando 100 anos de morto, pouco a pouco com seu estilo próprio e revolucionário atingiu o ápice, dominando o leitor, com quem dialogo e discute. Na história da moderna literatura brasileira, sua obra representa uma época, uma corrente de pensamento dentro da atividade criadora na ficção.

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Mulato de pequena estatura, gago e tímido, era um homem de temperamento particularmente difícil, encaramujado, pois a cor o complexava terrivelmente. Dono de extraordinária força de vontade bebeu nos grandes satíricos o que já trazia em si de amargo. Grande trabalhador intelectual colaborou em dezenas de jornais e revistas, fez traduções, escreveu contos que ficarão para sempre na historia da nossa língua, deixando ainda mais de uma dúzia de romances, onde estão estampadas as suas impressões da sociedade monarquista em que viveu. A obra de Machado de Assis não nasceu pronta, seus primeiros livros foram seus primeiros passos literários, e a transformação só aconteceu por volta de 1881, quando publicou o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e os contos Papéis avulsos.
Tradicionalmente se tem apontado esse romance como marco inicial do Realismo no Brasil, ampliando as dimensões da ficção brasileira, apresentando um romance psicológico rico na análise das relações humanas, cheias de digressões e narrado de maneira irreverente e irônica. Contudo os passados rumo a uma nova postura artística já se verificava desde a primeira metade do século XIX. A observação da produção literária dos escritores da última geração romântica, anos 60/70, revela a existência de algumas tendências que apontavam cada vez mais para uma literatura preocupada com o seu tempo (busca de objetividade, fé na razão, preocupação com o social), o que caracterizaria o Realismo alguns anos depois.
São exemplos dessas tendências: a objetividade das descrições de certos romances como Senhora, Lucíola e o Cabeleira. Os romances e contos machadianos anteriores tem muito parentesco com a literatura romântica, especialmente com os romances de José de Alencar. São estórias simples, onde interesses conflitantes originam impasses, são romances cinzentos de casinhos miúdos; e assim por diante: Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878).
Nesta fase, Machado apresenta uma obra autobiográfica, embora muito disfarçadamente ornamentando com cautelas e rodeios, a luta entre a sociedade e o individuo que se quer elevar, o drama do ambicioso, do homem superior vindo do meio humilde. O seu próprio drama. Em sua nova fase Machado cria personagem de muita força, fazendo viver as contradições da sociedade brasileira de seu tempo.
É o algo mais, a pitada de tempero que estava faltando desde o início de sua carreira. O Machado dos anos oitenta era outro, mais desenvolvido e maduro, escrevendo para leitores também maduro. A análise de sua obra revela com bastante clareza, que o escritor procurou satisfazer através dos seus romances, um desejo reprimido por coibições de origem ética e física. Sua evolução mental longo e penosa, em virtude dos recursos materiais, da condição supostamente inferior de mestiço, muito dificultou a manifestação livre do subconsciente da sua obra literária.
O mestiço Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no morro de Livramento, na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839, de onde nunca saiu, sendo filho do mulato Francisco José de Assis, pintor de parede e Maria Leopoldina Machado de Assis, portuguesa da Ilha de São Miguel. No ano em que nascera o Brasil atravessava uma época de transição política, que se reflete numa fase de agitações. Não possuíamos ainda uma literatura que refletisse o nosso ambiente, apenas o jornalismo tacanho em frases empolgadas e vazias, num clima de politicagem, era o único veículo para isso. Decorre a vida nos cafés da Rua do Ouvidor, o ponto máximo da cidade e centro do comércio elegante, local de encontros, de exibição da moda vinda da Europa. O Rio de Janeiro era uma pequena cidade suja, desconfortável e tumultuada.
Machado viveu a infância no morro, na pobreza e abandono, pois perdeu seus pais muito cedo e fora criado com Maria Inês sua madrasta, lavadeira e doceira, que para sobreviverem contava com sua ajuda, na venda dos doces nos colégios. Devido à aproximação com pessoas da sociedade fluminense teve padrinhos importantes, como Maria José de Mendonça Barroso rica viúva do general Bento Pereira Barroso, Ministro durante o Primeiro Reinado e na Regência e Senador do Império. Outro foi Joaquim Alberto de Souza Silveira, dignitário do Paço, Comendador da Ordem de Cristo e oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro. Levado à condição de órfão, começou ele a trabalhar muito jovem como aprendiz da Tipografia Nacional, e lá se tornou amigo do diretor que era o romancista Manuel Antonio de Almeida.
Seu ingresso nas letras, deve-se ao monarquista Paula Brito que passou a lhe dar proteção, exaltando seus méritos, publicando na sua folha aquilo que o moço lhe levava. Paula era proprietário de uma tipografia e livraria, ponto de encontro e de conversa dos jovens escritores do tempo, e o empregou como revisor e publicou seu primeiro poema na edição de 21 de janeiro de 1855, no seu jornal Marmota Fluminense, “Ela”. Começa a apresentar também trabalhos em prosa, no ensaio e na ficção como O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura, marcava-lhe a estréia no ensaio crítico e nela exibiam altos dotes de análises, espantosas num jovem de dezenove anos. O movimento constante de intelectuais e ilustres da sociedade na livraria (Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Araújo Porto-Alegre, José de Alencar, etc.), facilitou os contatos com ele, dando-lhe oportunidade para colaborar em outros jornais e revistas.
Mas graças ao convite de Quintino Bocaiúva, começou a escrever no Diário do Rio de Janeiro, na Semana Ilustrada, no Futuro e no Jornal das Famílias, iniciando assim inúmeras publicações na imprensa carioca no decorrer da década de 60, época em que o romancista se encontrava enfermo e já existia uma preocupação de originalidade realista. Foi no Diário onde permaneceu por sete anos, fazendo nesse período, uma sé
série de diferentes seções, em geral crônicas sobre os acontecimentos da semana, sobre assuntos literários, artísticos, políticos e com isto abandonando o amadorismo das revistas literárias.
Arguto, utilizando o humor, a ironia e uma feroz mordacidade, mostrava Machado de Assis qualidades excelentes de jornalista, totalmente diferente do romancista voltado para si mesmo, egoísta e acomodado, indiferente ao mundo que borbulhava ao seu redor, ou seja, aos grandes acontecimentos nacionais e estrangeiros. Mas através da atuação jornalística, mostra-nos como um homem profundamente atuante (1860/1870), época em que esteve vinculado ao Partido Liberal. Como jornalista, Machado de Assis ajudou a criar uma ambiente de vibração patriótica e clima de confiança em todas as fases da Guerra do Paraguai, apoiando moralmente a necessária continuação da guerra, o mesmo ocorreu a propósito da abolição.
Sua atividade é intensa. O teatro, grande moda na época atrai Machado, mas ele não é o seu forte, apesar de produzir várias peças entre os quinze e vinte cinco anos: Desencantos (1861), O Caminho da Ponta, O Protocolo (ambas de 1862), Quase Ministro (1863) e Os Deuses de Casaca (1865), todas as comédias curtas sem nenhuma qualidade cênica. Faltava ao jovem Machado, a indispensável aptidão para o gênero, a criação do conflito entre personagens reais, ação a movimentar o drama e o clima capaz de transmiti-la, eram para serem lidas e não representadas.
A crítica cultivada passageiramente por Machado entre 1858-1879, mas com peculiar sagacidade, sua leitura é indispensável para o conhecimento de alguns ângulos de sua personalidade literária, que como crítico, soube colher nas teorias estéticas das escolas Romântica e Realista, o melhor para sua arte literária, criando uma doutrina altamente produtiva. José Veríssimo seu fiel amigo, diz que “sua crítica, penetrante por um dom natural do seu espírito, quase só se exerceu particularmente, em prefácios de poetas novos que procuravam a sua consagração de mestre. Tem portanto, o pecado original de todas as apresentações e por isso mesmo não passou da apreciação simpática e elogiosa das obras recomendadas”. Não é verdade tal afirmação, Machado não foi só como José de Alencar um criador crítico, foi também o mais elevado e capaz praticante da crítica. Os seus principais ensaios: O Instinto de Nacionalidade, publicado em começos de 1873 na revista O Novo Mundo, editada em Nova Iorque por José Carlos Rodrigues. Ideal do Crítico, Idéias sobre o Teatro, Literatura Realista – Primo Basílio, a Nova Geração, O passado, o Presente e o Futuro da Literatura e os ensaios sobre Castro Alves, Fagundes Varela, José de Alencar (Iracema), atingem o ponto culminante como ensaísta, ou como afirma Afrânio Coutinho “pertencem ao que de mais alto já produziu a crítica brasileira”.
Para o escritor Machado de Assis, a crítica deveria ser normativa e reguladora, da qual decorria a boa literatura. Pois a criação tem que basear-se no estudo das técnicas da arte literária, através da observação dos modelos e das leis da poética, por isso foi aos antigos buscar a tradição crítica oriunda da Poética de Aristóteles. Portanto a crítica machadiana coloca-se nitidamente na linha da poética aristotélica, para a qual a arte não é cópia mais imitação, transfiguração, transposição da realidade.
Situando-se na encruzilhada entre Romantismo e Realismo, Machado é sem qualquer exagero a mais legítima glória da nossa literatura de ficção. Evoluiu para o realismo procurando nas novas tendências do espírito e da arte, a orientação que melhor se ajustava à sua mentalidade e aos seus ideais artísticos. Cultivando com excepcional talento um romance realista de características muito bem definidas, tão diferente dos seus contemporâneos (Aluísio de Azevedo, Raul Pompéia, Júlio Ribeiro e Inglês de Souza).
Sua superioridade sobre os escritores da época, reside em ter valorizado o homem, não o achando bom ou perfeito, mas exatamente igual ao da vida real, situou o homem como personagem diferente do até então estabelecido nos quadros de nossa literatura. Seus romances e contos têm características muito específicas e muito individualizadoras, quer de conteúdo quer de forma. Uma obra tão profunda de essência humana, tão poderosa na universalização do homem brasileiro e ao mesmo tempo tão significativo no que respeita às qualidades estilísticas.
Autodidata, aprendeu latim e francês com um padre amigo e depois alemão e grego. Machado de Assis é um dos mais significativos escritores da língua portuguesa de todos os tempos. Faleceu na madrugada de 29 de setembro de 1908 no auge da glória, cercado pelos companheiros mais chegados e longe dos escassos parentes, deixando uma obra variada, valioso, espantosa e volumosa. Suas obras completas foram publicadas na década de 70 – edições críticas em 15 volumes, pela editora Civilização Brasileira/MEC. A extraordinária literatura machadiana, que até hoje encontra leitores apaixonados, dentro de uma tradição literária pobre com a nossa, é de se estranhar que o grande romancista ainda permanece na lembrança do público que o reencontra, quer nos capítulos diários de telenovelas, nos filmes de longa metragem ou nas sucessivas reedições de seus livros.
Dotado de dom excepcional foi desde muito jovem influenciado pelas leituras, sempre atento aos melhores modelos da língua, leu, observou e assimilou não apenas os grandes escritores da língua portuguesa, mas também os clássicos das mais importantes literaturas européias (Sterne, Swift, Tacheray, Pascal, Cervantes e outros). Apesar da timidez, modéstia e espírito conservador, como poucos escritores da época fez carreira como jornalista e funcionário público, tornando-se um homem de renome, conquistando prestígio social.

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